Eu observava uma árvore hoje. O
vento batia nela, balançando suas milhares de pequenas folhinhas e suas
centenas, talvez milhares, de florezinhas amarelas. Ela balançava calma e
resoluta na certeza de que balançar ao vento era a melhor e única coisa que ela
poderia fazer em sua sólida e determinada resignação. O vento também me
atingia, mas como eu o sentia? O vento me balançava? O vento me acalentava? Me
ninava? Eu ajeitava o cabelo toda a vez que o vento me bagunçava. A árvore não.
Eu queria tanto ser aquela árvore. A árvore não sente o que eu sinto; essa
mistura de óleo de motor quente e essência cítrica, ou lavanda, em meu coração.
Essa coroa de espinhos decorada de alecrim e carvão. Esse vapor de pinho. Esse
cheiro de excremento humano derramado na fundação da existência terrena. Essa incrível
vontade de sumir de vez, para sempre, e aparecer daqui alguns instantes. Sumir,
deixar de existir e logo voltar a viver. E nesses milissegundos de um átimo de
tempo, apenas não existir. Existir me cansa. Me cansa demasiado. Me cansa mais
do que imaginas. Eu fiquei ali querendo ser aquela árvore, enquanto fumava meu
cigarro. Eu pensei que eu queria outras coisas também. Queria escrever, queria
ser calmo, resoluto, e possuir tranquila resignação tal qual aquela árvore. Queria
não ser aquela saudade toda de tudo. Eu queria ser menos dramático, queria
sofrer menos, queria não sentir tanto as coisas. A árvore não se cansava e eu
estava tão cansado. Quando eu fosse a árvore eu seria, apenas. Eu não seria
feliz, nem triste, nem melancólico, eufórico, didático, patético, previsível,
bobo, lindo, feio ou negro. Eu seria. Apenas seria. Eu não seria solitário,
pois a árvore não é nada além do que é. Eu não teria meu peito esmagado por uma
solidão que apenas um utópico amor de domingo poderia me salvar. Eu olhei pra
mim mesmo no gigantesco espelho do mundo e me vi atarefado, ocupado, culpado,
morto-vivo. No gigantesco espelho do mundo as pessoas passavam para lá e para
cá, com grandes pretensões e talvez um ou dois sonhos. O gigantesco espelho do
mundo é como um lago de infinito horizonte que dependendo do ângulo visto dá a
sensação de pouca perspectiva. Mais se sobrevoares sobre o gigantesco espelho do
mundo verás as pessoas indo e vindo, existindo; todas conectadas por frágeis
fios invisíveis; todas sendo eu ou nós. Eu cheguei só ao gigantesco espelho do
mundo e ninguém parece perceber minha presença, e daí eu fico olhando o ir e
vir das pessoas. O infinito ir e vir das pessoas. Uma vez estando na superfície
do espelho, caminhei até a margem oposta, por eras e mais eras e nada nem
nenhuma coisa familiar me ocorreu, a não ser todas as pessoas e seus ires e
vires. Meu corpo sentia frio, fome e sede. Mas nada havia, além do gigantesco
lago azul celeste. Quando eu cansava de andar me deitava em sua superfície e
boiava em suas águas vítreas por segundos ou anos. Eu caminhei atrás de algo cruzando
o gigantesco espelho do mundo. Quando enfim na margem oposta, havia uma pedra
enorme e antiguíssima, pois tinha crostas de limo sobre ela. Esse enorme objeto
sólido pairava plácido sobre a superfície liquida do gigantesco espelho do
mundo. Encravada e firme. Eu lembrei de ti, e do meu cansaço. Eu lembrei de
nós, da humanidade, e me prostrei de joelhos ao lado da pedra, exausto de
caminhar por tantos séculos, e toquei com a palma da minha mão a superfície
gelada e rochosa. Nada aconteceu. Por um instante ou séculos nada aconteceu.
Não sei ao certo o que iniciou o evento, talvez um revés de uma gota de saudade
subindo do lago, ao meu rosto, mas não sei ao certo; o vento, o mesmo que
balançava a árvore, soprou de norte a sul, e desfez o rochedo derrogado em
milhões, talvez bilhões, de dentes-de-leão coloridos, cada um deles da cor do
nosso amor. Enfim, finalmente. Do cor-de-rosa ao púrpura, do amarelo sol, e do
azul mar, as pequenas e numerosas partículas voaram com o vento para talvez semear,
através das águas, os sonhos de toda a gente, na minuciosa conexão humana. Dentro
de mim existe uma árvore, mas eu ainda não a encontrei, pois ela não é ego, ela
apenas é.
Descendo pelas brancas falésias de Albion, eu
pensava em nada. Algumas poucas coisas pululavam em minha mente, de natureza
aleatória e cíclica. O veículo me conduzia por reinos e destinos diversos. Por
quais caminhos e por onde iremos parar talvez seja uma pergunta muito complexa.
O clima era quente e ameno e as pessoas se espremiam na charrete. Eu pensava
que deveria estar pensando em algo. Que tudo que havia acabado de acontecer
deveria me avivar as memórias mais profundas. Porém, nada. Nada me ocorreu por
um bom tempo. Eu ficava pensando em Dom João V, e o que ele estaria pensando no
momento. Talvez em alguma bobagem, frívola, que imediatamente o levaria a
preguiça, ao tédio, e ao desejo em freiras do convento da capela real; que se
entregavam por obrigação, gemiam, suavam e faziam prole; que tornavam-se
freiras que por sua vez davam a luz a novos filhos bastardos que habitariam o
palácio do marquês de Louriçal, na zona Palhavã. Pensamentos encíclicos em
caminhos bifurcados, que bifurcavam novamente mais à frente, de novo e de novo,
cento e noventa e seis vezes, retornavam; e eu me dava conta do labirinto em
que habitava. Arrebatado pela calma resignação, eu cumpri boa parte do caminho
sem que ao menos um pensamento persistisse em minha cabeça; fiquei pensando
talvez em por que o rio chamava amazonas, por causa do estado ou o contrário
era verdadeiro, num se-e-somente-se, talvez. O rio correu e desceu a
ribanceira, me atingindo com força. O tempo todo, todo o tempo. O tempo é
sempre. Comecei a reconhecer as veredas de minha mente cada vez que passava
mais de uma vez por um lugar, por uma porta gigante de carvalho maciço – que
atrás abrigava dois tigres em um saguão de pedra lisa; um laranja e um branco,
ambos rajados – por paredes sólidas e frias, por brumas elétricas. Reajustando
e recalculando meu caminho. Eu lembrava muito bem de um homem com feições de um
réptil quelônio, nariz gordo e com marcas do tempo, feito pequenos buracos,
quase careca e parecendo tediosamente caridoso. Ele ficou horas e horas – cento
e noventa e seis horas – falando coisas incompreensíveis a mim, outorgando,
constituindo, previsto nos ditames, incluso na minuta, inscrita no número dois
cinco quatro sete dois, mil vezes. Eu via a boca do homem mexer, eu via outro
homem sentado na mesa atrás, indiferente ao mundo ao redor. Eu olhava você
chorar. Às vezes tossia. Eu não soube o que fazer, minha mente simplesmente não
soube.
A mente ia longe já. Estávamos os dois sentados
numa mesa em frente a um restaurante qualquer na Avenida Sarandi, em
Montevidéu, tomando uma taça de cerveja e apreciando o vaivém das pessoas,
algumas apressadas, outras calmas e sorridentes. Alguns grupos de jovens
passavam fazendo estardalhaço falando em castellano,
que soava como romance aos ouvidos. Nada fizemos para mudar o mundo naquele
instante, apenas existimos, lado a lado, neste fragmento de tempo. Acho que no
tempo anterior, que era o presente, também estávamos lado a lado. Existimos
para tudo de uma vez, numa esquina. Você parecia linda e eu parecia feliz; por
hora realmente devo ter acreditado em tal façanha de Deus e me julguei um
viajante do tempo. Nesse dia em particular, no qual vivia presentemente, porém
já estava incluso num passado truncado, ficamos ébrios, andamos feito loucos,
da praça da independência até o porto – comemos um naco de carne que assava ao
lado de grandes pimentões vermelhos e amarelos numa churrasqueira de um
quiosque em um mercado bagunçado e escuro. O som de um saxofone melancólico
soava no ar e um casal ao lado dublava baixinho “No importa la razon para amar te”. Uma sensação de choque elétrico
percorreu minha espinha e de repente vi, em apenas um dos meus olhos, uma flor
de papel crepom azul.
Você estava ao meu lado ainda, ou talvez fosse
mais um pedaço de passado truncado no meu presente, que dessa vez nem mesmo
sabia onde se encontrava. A flor de papel crepom azul era feita à mão por
crianças de rua que trabalhavam forçadas nos desertos da pobreza da América.
Não tinham valor. As flores de crepom azul são antagonistas de si próprias.
Frases aleatórias sobre teorias teológicas me recordaram da dualidade do mundo;
onde há um bom, haverá um mal, onde há um tigre, haverá um dragão, para cada
defeito teu, há uma qualidade que os anulam, e no céu deverá tudo ser
balanceado em perfeita harmonia, pois os próprios sábios da babilônia já
preconizavam tal pensamento desde o século III antes de cristo. Dessa forma, eu
tive uma epifania, e me prostrei diante de tal; para cada flor de crepom feita
por uma criança de rua seminua e de rosto sujo, uma flor nos jardins da América
nascia.
Eu estava titubeante entre o passado e presente
entrelaçados entre si. Mas voltamos ao nosso papo, na Avenida Sarandi, porém de
canto de olho eu vi um homem velho abordando duas crianças e metendo no bolso o
pouco dinheiro que eu acabara de lhes dar. Eu me lembro que voltamos a nossa
hospedaria, naquele dia, que é hoje, e abrimos a janela que dava frente a
estátua do General Artigas. A noite ia alta e quente e nos amamos como dois
namorados, pois beijei-lhe a boca e disse que a amava, em seu rosto e em seu corpo,
enamorado. Eu lembro muito bem de cada detalhe, real ou inventado, daqueles
dias, que são hoje, o camaleão andando calmo nas terras agrestes dos jardins,
os cachorros de rua, o cachorro empalhado, o sol, o sol... O rio da prata, as
praias, o delírio, as bicicletas, o vento, o chivito com ovo extra. A flor de crepom sobreviveu à passagem
rigorosa dos dias, em uma pequena botella
de alumínio, no lado esquerdo do meu cérebro. Ela ficou ali parada, enfeitando
o ambiente e minha memória. Nossos amores passados, nossos próprios amores
passados, que foram agora. Nosso sangue latino-americano. Ela tomava sol e não
crescia. Ela não precisava de água. Mas eu me lembro do cheiro do ar, e de seu
perfume vez em quando, nesses dias de sábado ensolarado, que é hoje. Lembro em
como os sorrisos pairavam nos recantos bem cuidados de uma América quase
européia. Numa sonata alegre passei a ouvir: “Já não cantas, já não vibras, já nem existes mais, pobre de ti. Pois se
não existe em mim, pois se fugistes das agruras do meu universo, já nem existe
mais, em canto algum.” Pois assim é a realidade humana, pensava, de
expurgar o som o cheiro e o gosto, do tango da pele e da carne, e seguir.
O meu segundo momento de epifania me fez tremer
as pernas; por Deus, a dualidade do homem e da ciência, das partículas e das
ondas, das mitologias e da história; Haveria então uma flor de papel crepom
vermelha para cada flor de papel crepom azul. Eu sentei e chorei. Não de
desgosto ou descontentamento, mas de pura e inextrincável saudade.
Eu apertei a sua mão, mas não tive coragem de te
olhar. E segui. A flor de crepom azul eu trouxe comigo e a vermelha talvez
ainda exista, em algum lugar, mesmo que em um tempo diferente desse que lhes
falo. Talvez esteja, ou seja, desbotada, rasgada ou rabiscada com nomes e
telefones, corações transpassados por flechas e desenhos felizes. Talvez esteja
escorando uma foto de alguém. Talvez dentro de uma sacola, num fundo de
armário. Eu não sabia. A minha jaz em uma caneca de porcelana e eu por vezes
acho que é de verdade, porém não tem espinhos; tentei aguar-lhe uma vez, mas em
súbito lembrei que iria morrer com meu cuidado excessivo; lembrei que adubar
não era necessário. Ela jaz saudável e intacta, sem pegar sol, sem emitir odor,
sem atrair insetos, sem apodrecer, sem murchar nem secar. O lado mais bonito
das flores de crepom é que, apesar de falsas, não morrem.
A luz entrava pela janela, filtrada pelo vidro,
composta de uma mistura híbrida entre o luar e as luzes artificiais, fracas e
levemente azuladas. As suas ondulações de diferentes naturezas tocam-lhe a pele
e imprimem uma certa pressão fazendo com que a resistência da mesma a torne
ainda mais profana e ansiando contato. A linha de seu perfil, deitada dessa
forma, confunde-se com a de um tipo de animal, o animal humano, exalando uma
aura carmim. Inspira vagarosamente o ar como se quisesse sorver molecularmente
toda a atmosfera do momento, dentro e fora, dentro e fora, repitidas vezes sem
formato de invólucro qualquer. Os olhos, ora semi-cerrados, contrastam com a
pupíla dilatada desenhada em círculos concêntricos perfeitos, petrificados,
loucos e de doçura, num misto sem proporções fixas e definidas. O leve tremor
de seu corpo, quase imperceptível a incauto navegante, denota que adentrei por
entre as brumas do desconhecido, desbravo terras rudes e selvagens, que
escondem nada além do que queres esconder-me, num mistério rasgado e espesso,
que me enlouquece e me excita e me vive. Articuladamente respira pelo corpo,
morde minha boca com força e delicadeza, desliza sua língua hábil na minha,
enleiando-se numa fúria voraz, ora macia, ora tórrida, ora branda. E aspira-me
o torso, como se precisasse guardar minha essência em algum lugar intermediário
entre seu pulmão e seu ventre. Os sabores naturais de seu corpo necessitam ser
trasferidos quase que osmóticamente para os meus sentidos, e degusto deles e
você maléficamente retribui, gemendo baixinho, respirando curto e morrendo
devagar. Indocilmente me repele e me afasta para que a força que exerço seja
maior e meu corpo pese ainda mais sobre o seu, causando-lhe sensação de
submissão conquistada, cedida, permitida nas regras inventadas ali mesmo por
nós. Toco-lhe o corpo com devoção e desrespeito, juntos e entrelaçados, e seu
quadril move-se por vontade própria, buscando minha mais genuína ereção, composta
de desejo e impulso, prestes a lhe causar bem e mal, deixando-te cada vez mais
ávida e pulsante. Sinto suas cores, claras e pálidas, levemente brilhantes, e dentro
de ti a angustia aumenta e arrefece, espremido pela força de suas coxas, pela
combinação meticulosa de nossos movimentos, e acaba em catarse lenta e duradoura,
expurgando tudo que te – nos – fazia hesitar, destruindo os véus. E dentro dos
seus olhos eu vejo toda malícia que quer me ofereçer, e o mundo que goza-te, que
te celebra, é afortunado. Sou grato e desfaleço em ti, e a tua imagem junto a
complexos mosaicos coloridos formam um presságio de que recomeçar tudo de novo
é necessário, quantas vezes for preciso, pra te matar dentro de mim, só um
pouco. Congratulo-a, porém sei no meu mais íntimo que não me lê por completo. E
temes, és cauta e diferente, e mulher, um pouco minha ao menos.
De nascença sou paulista. Paulistano, termo preciso. Minha mãe também, nascida por aqui em algum lugar da zona norte. Ela me contava que quando criança lavava roupa no rio e eu fico hoje me perguntando que tal rio seria esse com água limpa, pra se lavar roupas. A cidade de São Paulo seria incrível se nossos rios fossem limpos, como Paris, como as vias européias em geral. Adotamos normalmente, dos europeus, só o que não nos vale. Minha mãe dizia também que quando moça, seu passatempo com as irmãs, era ir ao circo, e contando-me essas histórias ela fazia uma pintura na descrição, embaraçando as cores vermelhas e amarelas das tendas, com o cheiro dos animais e as apresentações dos Demônios da Garoa. E eu fiquei pensando um pouco, tecendo na minha imaginação, um cenário louco e bucólico, de trás pra frente, onde um palhaço, dando os braços para o ar e sorrindo maniacamente, cantava trem das onze e corria em direção ao público, onde uns riam e outros choravam, de espanto. Ela contava que naquela época era muito comum fazer festa junina nas ruas e ela passava bom tempo com as irmãs recortando bandeirinhas, que seriam presas a barbantes, e por fim enfeitariam os arcos de bambú que passavam de um lado a outro na rua. Fogueira grande e quentão, frio de época. Vez em quando, por aquele tempo, aparecia o tio dela e estacionava o caminhão de carga, sujo de barro do Brasil, e ficava um dia ou dois. Esse homem era tido como um dos mais brutos de toda região e fazia fama com sua crueldade e vilania. Lembrava minha mãe que um dia ele arrancara a orelha de um homem com um único soco, e eu dizia que aquilo era impossível, mas ela replicava, dissertando que seu punho tinha a força de um coice de burro chucro. Que imagem terrível e de triste solidão que fiz de meu tio-avô, temperada com dias de violência e aventura, nas estradas a fora ouvindo uma radiola velha e fumando cigarro sem filtro. E não me lembro ao certo, mas esse meu tio-avô, segundo minha mãe, tinha corpo fechado. Desses tipos que nenhum sincretismo atinge, ilê, ilê camará, nem despacho nem raiz de maniçoba, nada derruba tal cristão com suas rezas e seus guias. Não cheguei a conhecê-lo, nem a seu pai, meu bisavô, que era homem sovina e misantropo. As vezes fico imaginando que vingamos pelo tempo, ao sabor da sorte e do vento. O cenário todo posto em perspectiva de lavadeiras e donas de casa de visão débil pela neblina das cinco da manhã e pela ignorância do androcentrismo natural da década de cinquenta me traz qualquer coisa de familiar ainda. Ela diz sempre, baixinho e com carinho, que o que ela viveu de ruim não quis passar pros filhos, e sem saber me inclui gentilmente no abraço de sua sabedoria. A todos nós, em fato.
Meu pai vem de cima, como dizem, Pernambuco. Estado lindo, de Recife à Olinda, belezas e cultura, antigo e novo, cores dos carnavais e dos bonecos de gigantes de braços frouxos a pairar na multidão. Porém meu pai vem de região afastada no estado, alguma coisa perto da Bahia, onde antigamente era uma passagem dos missionários que pregavam para população ribeirinha. Uma semelhança com as histórias de minha mãe é o tal do rio, que meu pai me dizia ir pescar quando criança, de manhãzinha, quando o ar ainda não estava quente. Ele contava bem devagar das suas molecagens dos tempos idos, em que pegar goiaba do lado de lá da cerca era sentimento de liberdade, e que juntar três ou quatro amigos para passar a perna e derrubar a professora era motivo de riso solto, e valia a pena o castigo. Meu pai é de dia de São José e tem santo forte. Veio ao mundo numa casa de taipa na beira do rio, como o caboclo das matas, e criou uma fita ligando sua origem até São Paulo, fita acetinada escrita Nosso Senhor do Bonfim. Criou cinco filhos e trabalhou por sete homens, amou por vinte e cinco. A mãe dele disse que nenhum cobertor é curto para os nossos corações quentes. É um algo de dar, dar muito, as vezes até sem sinceridade. A mãe dele dizia que ele nasceu tão rápido que ninguém percebeu. Ela estava sozinha na casa, o marido na lida, e pediu pro meu pai buscar um pouco de água de rio e quando ele voltou já tinha nascido. É confuso, mas é estória. Minha vó tem as mais insólitas, inspiradas talvez em algum escritor de cordel que se perdeu nas tramas do tempo. Certa feita, contava ela, na beira do rio ela viu uma dança de peixes pratedos que voavam por cima das águas, rente a superfície, e eram brilhantes à luz da lua. Na escuridão da noite era possível ver a silhueta de um homem, na margem oposta, tocando uma música de feitiço no acordeão. No dia seguinte encontraram milhares de peixes à margem do velho chico, que foram coletados com a alegria esperançosa do milagre. E eu fico pensando que minha vó é qualquer coisa como de outro mundo, mistura de coisas, pimenta dedo-de-moça vermelha e graúda sobre tábua de madeira rústica. É doce, severa e diligente. Diligência que meu pai herdou. Acho que talvez eu tenha falhado nesse ponto, mas sem querer meu pai ensinou-me a maior lição, sobre a segurança de nossos atos pensando no futuro. E me envolve com sua matuta solidez.
Pensando não tão longe, eu me via correndo descalço nos quintais de cimento queimado. Tínhamos uma árvore de tronco apodrecido, que durante a primavera despencava de coquinhos amarelos, bem redondinhos, minha mãe dizia pra gente que eram venenosos. Claro que um dia eu comi um, só pra verificar a veracidade do dito. Tínhamos um cão. Tínhamos um tanque de pedra. Tínhamos aranhas, muitas aranhas. Tínhamos uns aos outros. Tínhamos uma serra de fita que meu pai usava para fazer espadas e carrinhos para nós, nas horas vagas, usando sobras de chapas de compensado. É simples, é muito simples. Fico pensando nas análises combinatórias que faço mentalmente sobre quantas pessoas são parecidas comigo, conosco, e as combinações são tantas e infinitas, mas ainda assim únicas.
O dia de hoje foi curioso, eu levantei e me banhei, tomei duas xícaras de café preto, o que talvez explique o bater dos meus dentes. Abri todas as janelas, buscando o ar da primavera e nele encontrar, por sorte, alguma identidade com algo que não mais possuo. Após alguns breves minutos sentindo o vento lambendo-me as faces eu pensei ter adormecido de novo. Foram três batidas suaves na porta que num primeiro momento me fizeram dúvidar da minha audição. Quem haveria de ser? Abri. Pedi que entrassem. Meus fantasmas do passado vieram me visitar hoje, bem cedo, mas aos poucos vão se desvanecendo, com suas cores pálidas, roxas e verdes. Mas eu insisto, na minha solidão rasgada, para que fiquem, pois estou preparando um chá.
Tudo começou com uma conversa
despretensiosa entre eu e um grande amigo, enquanto tomávamos uma cerveja, e
falávamos sobre a vida e coisas do tipo. Era um dia de grandes conquistas, pelo
menos para esse amigo meu. Essa conversa despretensiosa era sobre o estado
transitório, ou seja, não permanente, da paz e da calmaria nas pessoas do mundo
moderno. Parece chato para uma conversa entre amigos, e talvez seja mesmo, mas as
vezes odiar o mundo por algumas horas e duvidar de todas suas crenças e
certezas, tomando algum álcool de preferência, nos faz sentir melhores para
seguir adiante. Pois bem, não divergindo do assunto, estávamos falando sobre a
paz, e lhe garanto, como garanti ao meu amigo em nossa conversa, que o ser
humano não busca paz, e por vezes até a rejeita ou adia. Isso causou-lhe uma
certa perplexidade, que pediu mais explicações, pois como não haveríamos de
buscar a paz, se esta traria igualdade, sem vítimas de guerra e sobretudo com oferta
de recursos a todos. Eu lhe disse que devemos pensar no ser humano como ser
inquieto e pensante. O ser humano é único bicho que se exercita por conta
própria, enfrentando academias lotadas, e ainda por cima pagando por isso,
apenas para melhorar a aparência. O ser humano possui diversos passatempos,
filmes, teatro, jogos, cartas, videogames, internet,
redes sociais, sexo recreativo, imaginação, que em parte atenua o tédio das
nossas existências. Porém, quando esse tédio chega a níveis alarmantes, o ser
humano precisa perturbar o ambiente, causar intriga, irritar, provocar e
agredir, sem nenhuma outra razão a não ser espantar a pasmaceira, mudar o
cenário da quietude, varrer a estagnação. E com isso fazemos surgir o risco e
conseguimos dias de mais aventura. Como já dizia Eça de Queiroz “É a paz que, dando os vagares da imaginação
- causa as impaciências do desejo”. E, de fato, isso pra mim é um mantra e
já foi repetido muitas vezes anteriormente por diversos pensadores de grande
porte como Vergílio Ferreira e Dostoiévski. Porém, me intriga em fazer
uma conexão deste comportamento com a própria evolução da espécie humana. Vejamos
um claro exemplo, se o desejo mais interior do ser humano não fosse a guerra,
não teríamos ambições, o mundo seria um único império, e ouso a dizer que
grandes impérios nunca seriam desfeitos, pois da inquietação e do desafio vem a
quebra do jugo da escravidão e dos cabrestos e dos tabus. A paz é estado ilusório,
ela não existe de fato; existe como conceito ou ainda como algo a ser alcançado,
conquistado, como um Éden, sentar num morro verde ao lado de um cão alegre e
olhando o céu azul, balançar na rede e sentir a natureza beijando-nos a face. A
paz é para ser conquistada. E uma vez conquistada o que vocês acreditam que acontece
levando em consideração nossa natureza? Nós não gostamos de conquista, mas de conquistar.
E logo em seguida, outra guerra perturba-nos a alma. Não seria então um estado
evolutivo de todos nós de buscarmos sempre a própria degradação para
ressurgirmos melhores, mais adaptados, mais pensantes, mais agudos, com mais
recursos. Sem a nossa inquietação nada seria como é, não teríamos os grandes
prédios, as grandes construções, as revoluções de classe e de credo e das
raças, não teríamos as grandes paixões, os furtivos adultérios, e não se entenderia
o poder libertador de se encontar miserável e ainda assim buscar dias melhores.
Inclusive nas áreas das artes e das ciências, as grandes produções e
descobertas advém de um periodo de guerra ou pós-guerra; a necessidade e a dor
move-nos. Um dos exemplos mais belos que eu posso citar é encontrado na figura
acima, uma obra de Pablo Picasso, chamada Guernica (Clique na imgem pra visualizar em tamanho grande). A pintura é de uma beleza
terrível, retratando o bombardeio sofrido pela cidade espanhola de Guernica em
26 de abril de 1937, por aviões alemães que apoiavam o ditador Franco. O
sofrimento causado pela guerra foi o combustível para criação artística de
Picasso, assim como foram suas paixões, suas esposas e suas amantes.
Seguindo essa dicotomia, após a
guerra ou turbulência os que foram derrotados se vestem de um sentimento,
indissolúvel, de tentar mais uma vez sua sorte, cara ou coroa três vezes,
melhor de três no zerinho ou um, revanche no baralho; os derrotados são os mais
inquietos, e os mais felizes em contraponto. Os vencedores, por sua vez, logo
necessitam de outro passatempo, pois a paz é enfadonha, aborrecida, sacal, é
muita marola, e pouca onda. Gostamos de
onda, de preferência enorme, impossível de domar, pois no desafio cresce o
sentimento dos conquistadores, de se vencer a si próprio, superar a si próprio,
vencer aquela corrida, aquela partida de futebol e de conquistar aquela pessoa especial.
Isso descarrega ondas de prazer imensas em nosso cérebro, dizendo-nos, como uma
mensagem bioquímica, que desafiar, e sobretudo desafiar-nos a nós mesmos, nos é
incrivelmente vantajoso. É daí que penso, é evolutivo, é o que nos difere dos
antepassados ou ainda de outros animais, não nos basta nascer, crescer,
reproduzir e morrer. As aulas de ciência básica para as crianças deveriam mudar
essa máxima, passando por cima de suas recorrentes hipocresias. Um modo mais
honesto seria: Nascer, crescer, batalhar e morrer. Reproduzir é opcional, ir à
batalha não.
E desse modo nossa conversa seguiu
por muitos minutos. Esse meu amigo hoje mudou o rumo da vida mirando em outros
objetivos, completamente diferentes dos seus iniciais. No caso dele, investir
em outra carreira e outros horizontes trouxeram muitas oportunidades de
crescimento e me senti orgulhoso e feliz por ele. Por um momento me veio na mente que deveria
fazer o mesmo que ele, e começar do zero e rascunhar tudo de novo, em novos ares,
cabeças e pessoas. Porém me assombra a idéia de me sentir vazio, oco e
ressonante, quando chegar lá, no novo alvo, no novo objetivo primordial. E
assim eu vou adiando um pouco e guerreando comigo mesmo até tornar-se inevitável.
A inevitabilidade das mudanças, contudo, é outro assunto, talvez mais complicado que esse.
“O que você disser, não diga duas vezes. Encontrando o seu pensamento em outra pessoa:
negue-o. [...] Apague as pegadas”.
Bertold Brecht
Não há ninguém aqui, meu bem, minha querida, fujamos. Sei,
claro que sei que não podes. O quê? Quem vem lá? Quem vem lá? Fique tranquila.
Estamos bem, só tomando um drinque, estamos cercados de pessoas. É perigoso
aqui, eu sei que é. Me dê sua mão. É claro, claro que sei que é inadequado, mas
podemos apenas disfarçar? Eles estão vindo aí, é melhor nos separarmos para o
bem, veja, cuidado. Me encontre no chafariz, ali à frente. O quê? Vais demorar?
Olhe, cuidado com quem falas, e o que falas, se lhe pegam pode ser tarde
demais. Disse alguém que estaríamos aqui? É claro que eu não disse a ninguém!
Ou tu achas que não mensuro consequências. O amanhã tardará a chegar,
precisamos de precaução, precaução e estratégia. Veja, estou indo, não é mais
seguro. Vês aquele homem atravessando a rua? cabelo baixo, meio louro, cara de
polaco, se chegando... Vá, vá de uma vez. Estou indo-me também.
Embora saiba que ela não vá falar com ele, eu aposto, tão
certo como estou dando passos agora que... Ah! bobagens, ande homem, ande.
Ninguém pode vê-lo, ninguém. E se acaso encontrar outros e outras no caminho?
Apresse-se, vamos. Um pé depois do outro, um pé depois do outro. Olhando pra
baixo, olhe pra baixo. Será que é vergonhoso? Será? O que pensas? O que mereço?
E tu, como vieste parar aqui? Chafariz, chafariz, chafariz... Mas que merda,
tinha que dar essa chuva. Ela não está aqui ainda. Medo mortal que me assombra.
Nos assombra. Acho que na verdade lhe assombra mais, não é, não é? Diga-lá,
diga por Deus, pelo Diabo!
Onde estavas, ninguém a
seguiu? Tens certeza? É, de fato, concordo contigo. É bom e prudente andarmos,
andemos. O quê? Quem lhe perguntou isso? Não, claro que não os contei sobre
isso. Ainda louco não estou. Mas é melhor mesmo, nem um pio. Boca de siri.
Estás ofegante, que sentes?, dor no peito, estás cansada? Eu também, ofego,
busco folêgo e a respiração vai rápida, vai sôfrega. Toma, pega um cigarro,
deves estar aos nervos. Dobra aqui, nesse beco, dobra aqui, é melhor. Não, é
claro que nada vai dar errado. Pula essas poças d’água e não se preocupe com os
mendigos, são inofensivos, venha, venha rápido. Oh, meu Deus, caíste! Que
acontece? Machucaste o joelho? Estás bem? Já estamos chegando, calma lá. Eu sei
que estás cansada, eu também, mas o que podemos fazer, além de fugir, fugir e
fugir. O quê? Você está pensando em... Não, é claro que não está pensando nisso.
Eles entenderiam? Não sei. E você pode se machucar feio com isso. Eu seguraria
na sua mão, como sempre, como sempre. Mas é o que queres? Não... Bom,
desconfiava a princípio. Então continuemos, embrenhe aqui nessa escuridão.
Tenha coragem, é o único jeito. Pulemos essa grade, pulemos. Ali está um
cobertinho, ninguém irá nos ver. O quê? A lâmpada? Me alcançe aquele pedaço de
pau. Pronto, resolvido. Não havia outro jeito, tive que estilhaçá-la, é por
nosso bem. Venha, chegue mais perto, está chovendo. Tome, vista minha blusa, irá
lhe proteger do vento. Não, eu não penso como você, acho que poderíamos sim,
sim poderíamos. Mas isso não importa agora. Venha cá, pois preciso tanto de ti.
Não há ninguém aqui, estamos seguros, me beija, me beija agora.