terça-feira, novembro 25, 2014

A árvore é




Eu observava uma árvore hoje. O vento batia nela, balançando suas milhares de pequenas folhinhas e suas centenas, talvez milhares, de florezinhas amarelas. Ela balançava calma e resoluta na certeza de que balançar ao vento era a melhor e única coisa que ela poderia fazer em sua sólida e determinada resignação. O vento também me atingia, mas como eu o sentia? O vento me balançava? O vento me acalentava? Me ninava? Eu ajeitava o cabelo toda a vez que o vento me bagunçava. A árvore não. Eu queria tanto ser aquela árvore. A árvore não sente o que eu sinto; essa mistura de óleo de motor quente e essência cítrica, ou lavanda, em meu coração. Essa coroa de espinhos decorada de alecrim e carvão. Esse vapor de pinho. Esse cheiro de excremento humano derramado na fundação da existência terrena. Essa incrível vontade de sumir de vez, para sempre, e aparecer daqui alguns instantes. Sumir, deixar de existir e logo voltar a viver. E nesses milissegundos de um átimo de tempo, apenas não existir. Existir me cansa. Me cansa demasiado. Me cansa mais do que imaginas. Eu fiquei ali querendo ser aquela árvore, enquanto fumava meu cigarro. Eu pensei que eu queria outras coisas também. Queria escrever, queria ser calmo, resoluto, e possuir tranquila resignação tal qual aquela árvore. Queria não ser aquela saudade toda de tudo. Eu queria ser menos dramático, queria sofrer menos, queria não sentir tanto as coisas. A árvore não se cansava e eu estava tão cansado. Quando eu fosse a árvore eu seria, apenas. Eu não seria feliz, nem triste, nem melancólico, eufórico, didático, patético, previsível, bobo, lindo, feio ou negro. Eu seria. Apenas seria. Eu não seria solitário, pois a árvore não é nada além do que é. Eu não teria meu peito esmagado por uma solidão que apenas um utópico amor de domingo poderia me salvar. Eu olhei pra mim mesmo no gigantesco espelho do mundo e me vi atarefado, ocupado, culpado, morto-vivo. No gigantesco espelho do mundo as pessoas passavam para lá e para cá, com grandes pretensões e talvez um ou dois sonhos. O gigantesco espelho do mundo é como um lago de infinito horizonte que dependendo do ângulo visto dá a sensação de pouca perspectiva. Mais se sobrevoares sobre o gigantesco espelho do mundo verás as pessoas indo e vindo, existindo; todas conectadas por frágeis fios invisíveis; todas sendo eu ou nós. Eu cheguei só ao gigantesco espelho do mundo e ninguém parece perceber minha presença, e daí eu fico olhando o ir e vir das pessoas. O infinito ir e vir das pessoas. Uma vez estando na superfície do espelho, caminhei até a margem oposta, por eras e mais eras e nada nem nenhuma coisa familiar me ocorreu, a não ser todas as pessoas e seus ires e vires. Meu corpo sentia frio, fome e sede. Mas nada havia, além do gigantesco lago azul celeste. Quando eu cansava de andar me deitava em sua superfície e boiava em suas águas vítreas por segundos ou anos. Eu caminhei atrás de algo cruzando o gigantesco espelho do mundo. Quando enfim na margem oposta, havia uma pedra enorme e antiguíssima, pois tinha crostas de limo sobre ela. Esse enorme objeto sólido pairava plácido sobre a superfície liquida do gigantesco espelho do mundo. Encravada e firme. Eu lembrei de ti, e do meu cansaço. Eu lembrei de nós, da humanidade, e me prostrei de joelhos ao lado da pedra, exausto de caminhar por tantos séculos, e toquei com a palma da minha mão a superfície gelada e rochosa. Nada aconteceu. Por um instante ou séculos nada aconteceu. Não sei ao certo o que iniciou o evento, talvez um revés de uma gota de saudade subindo do lago, ao meu rosto, mas não sei ao certo; o vento, o mesmo que balançava a árvore, soprou de norte a sul, e desfez o rochedo derrogado em milhões, talvez bilhões, de dentes-de-leão coloridos, cada um deles da cor do nosso amor. Enfim, finalmente. Do cor-de-rosa ao púrpura, do amarelo sol, e do azul mar, as pequenas e numerosas partículas voaram com o vento para talvez semear, através das águas, os sonhos de toda a gente, na minuciosa conexão humana. Dentro de mim existe uma árvore, mas eu ainda não a encontrei, pois ela não é ego, ela apenas é. At Last by Etta James on Grooveshark


quarta-feira, outubro 16, 2013

Flor de papel crepom azul



Descendo pelas brancas falésias de Albion, eu pensava em nada. Algumas poucas coisas pululavam em minha mente, de natureza aleatória e cíclica. O veículo me conduzia por reinos e destinos diversos. Por quais caminhos e por onde iremos parar talvez seja uma pergunta muito complexa. O clima era quente e ameno e as pessoas se espremiam na charrete. Eu pensava que deveria estar pensando em algo. Que tudo que havia acabado de acontecer deveria me avivar as memórias mais profundas. Porém, nada. Nada me ocorreu por um bom tempo. Eu ficava pensando em Dom João V, e o que ele estaria pensando no momento. Talvez em alguma bobagem, frívola, que imediatamente o levaria a preguiça, ao tédio, e ao desejo em freiras do convento da capela real; que se entregavam por obrigação, gemiam, suavam e faziam prole; que tornavam-se freiras que por sua vez davam a luz a novos filhos bastardos que habitariam o palácio do marquês de Louriçal, na zona Palhavã. Pensamentos encíclicos em caminhos bifurcados, que bifurcavam novamente mais à frente, de novo e de novo, cento e noventa e seis vezes, retornavam; e eu me dava conta do labirinto em que habitava. Arrebatado pela calma resignação, eu cumpri boa parte do caminho sem que ao menos um pensamento persistisse em minha cabeça; fiquei pensando talvez em por que o rio chamava amazonas, por causa do estado ou o contrário era verdadeiro, num se-e-somente-se, talvez. O rio correu e desceu a ribanceira, me atingindo com força. O tempo todo, todo o tempo. O tempo é sempre. Comecei a reconhecer as veredas de minha mente cada vez que passava mais de uma vez por um lugar, por uma porta gigante de carvalho maciço – que atrás abrigava dois tigres em um saguão de pedra lisa; um laranja e um branco, ambos rajados – por paredes sólidas e frias, por brumas elétricas. Reajustando e recalculando meu caminho. Eu lembrava muito bem de um homem com feições de um réptil quelônio, nariz gordo e com marcas do tempo, feito pequenos buracos, quase careca e parecendo tediosamente caridoso. Ele ficou horas e horas – cento e noventa e seis horas – falando coisas incompreensíveis a mim, outorgando, constituindo, previsto nos ditames, incluso na minuta, inscrita no número dois cinco quatro sete dois, mil vezes. Eu via a boca do homem mexer, eu via outro homem sentado na mesa atrás, indiferente ao mundo ao redor. Eu olhava você chorar. Às vezes tossia. Eu não soube o que fazer, minha mente simplesmente não soube.
A mente ia longe já. Estávamos os dois sentados numa mesa em frente a um restaurante qualquer na Avenida Sarandi, em Montevidéu, tomando uma taça de cerveja e apreciando o vaivém das pessoas, algumas apressadas, outras calmas e sorridentes. Alguns grupos de jovens passavam fazendo estardalhaço falando em castellano, que soava como romance aos ouvidos. Nada fizemos para mudar o mundo naquele instante, apenas existimos, lado a lado, neste fragmento de tempo. Acho que no tempo anterior, que era o presente, também estávamos lado a lado. Existimos para tudo de uma vez, numa esquina. Você parecia linda e eu parecia feliz; por hora realmente devo ter acreditado em tal façanha de Deus e me julguei um viajante do tempo. Nesse dia em particular, no qual vivia presentemente, porém já estava incluso num passado truncado, ficamos ébrios, andamos feito loucos, da praça da independência até o porto – comemos um naco de carne que assava ao lado de grandes pimentões vermelhos e amarelos numa churrasqueira de um quiosque em um mercado bagunçado e escuro. O som de um saxofone melancólico soava no ar e um casal ao lado dublava baixinho “No importa la razon para amar te”. Uma sensação de choque elétrico percorreu minha espinha e de repente vi, em apenas um dos meus olhos, uma flor de papel crepom azul.
Você estava ao meu lado ainda, ou talvez fosse mais um pedaço de passado truncado no meu presente, que dessa vez nem mesmo sabia onde se encontrava. A flor de papel crepom azul era feita à mão por crianças de rua que trabalhavam forçadas nos desertos da pobreza da América. Não tinham valor. As flores de crepom azul são antagonistas de si próprias. Frases aleatórias sobre teorias teológicas me recordaram da dualidade do mundo; onde há um bom, haverá um mal, onde há um tigre, haverá um dragão, para cada defeito teu, há uma qualidade que os anulam, e no céu deverá tudo ser balanceado em perfeita harmonia, pois os próprios sábios da babilônia já preconizavam tal pensamento desde o século III antes de cristo. Dessa forma, eu tive uma epifania, e me prostrei diante de tal; para cada flor de crepom feita por uma criança de rua seminua e de rosto sujo, uma flor nos jardins da América nascia.
Eu estava titubeante entre o passado e presente entrelaçados entre si. Mas voltamos ao nosso papo, na Avenida Sarandi, porém de canto de olho eu vi um homem velho abordando duas crianças e metendo no bolso o pouco dinheiro que eu acabara de lhes dar. Eu me lembro que voltamos a nossa hospedaria, naquele dia, que é hoje, e abrimos a janela que dava frente a estátua do General Artigas. A noite ia alta e quente e nos amamos como dois namorados, pois beijei-lhe a boca e disse que a amava, em seu rosto e em seu corpo, enamorado. Eu lembro muito bem de cada detalhe, real ou inventado, daqueles dias, que são hoje, o camaleão andando calmo nas terras agrestes dos jardins, os cachorros de rua, o cachorro empalhado, o sol, o sol... O rio da prata, as praias, o delírio, as bicicletas, o vento, o chivito com ovo extra. A flor de crepom sobreviveu à passagem rigorosa dos dias, em uma pequena botella de alumínio, no lado esquerdo do meu cérebro. Ela ficou ali parada, enfeitando o ambiente e minha memória. Nossos amores passados, nossos próprios amores passados, que foram agora. Nosso sangue latino-americano. Ela tomava sol e não crescia. Ela não precisava de água. Mas eu me lembro do cheiro do ar, e de seu perfume vez em quando, nesses dias de sábado ensolarado, que é hoje. Lembro em como os sorrisos pairavam nos recantos bem cuidados de uma América quase européia. Numa sonata alegre passei a ouvir: “Já não cantas, já não vibras, já nem existes mais, pobre de ti. Pois se não existe em mim, pois se fugistes das agruras do meu universo, já nem existe mais, em canto algum.” Pois assim é a realidade humana, pensava, de expurgar o som o cheiro e o gosto, do tango da pele e da carne, e seguir.
O meu segundo momento de epifania me fez tremer as pernas; por Deus, a dualidade do homem e da ciência, das partículas e das ondas, das mitologias e da história; Haveria então uma flor de papel crepom vermelha para cada flor de papel crepom azul. Eu sentei e chorei. Não de desgosto ou descontentamento, mas de pura e inextrincável saudade.
Eu apertei a sua mão, mas não tive coragem de te olhar. E segui. A flor de crepom azul eu trouxe comigo e a vermelha talvez ainda exista, em algum lugar, mesmo que em um tempo diferente desse que lhes falo. Talvez esteja, ou seja, desbotada, rasgada ou rabiscada com nomes e telefones, corações transpassados por flechas e desenhos felizes. Talvez esteja escorando uma foto de alguém. Talvez dentro de uma sacola, num fundo de armário. Eu não sabia. A minha jaz em uma caneca de porcelana e eu por vezes acho que é de verdade, porém não tem espinhos; tentei aguar-lhe uma vez, mas em súbito lembrei que iria morrer com meu cuidado excessivo; lembrei que adubar não era necessário. Ela jaz saudável e intacta, sem pegar sol, sem emitir odor, sem atrair insetos, sem apodrecer, sem murchar nem secar. O lado mais bonito das flores de crepom é que, apesar de falsas, não morrem.

segunda-feira, agosto 26, 2013

Doce



A luz entrava pela janela, filtrada pelo vidro, composta de uma mistura híbrida entre o luar e as luzes artificiais, fracas e levemente azuladas. As suas ondulações de diferentes naturezas tocam-lhe a pele e imprimem uma certa pressão fazendo com que a resistência da mesma a torne ainda mais profana e ansiando contato. A linha de seu perfil, deitada dessa forma, confunde-se com a de um tipo de animal, o animal humano, exalando uma aura carmim. Inspira vagarosamente o ar como se quisesse sorver molecularmente toda a atmosfera do momento, dentro e fora, dentro e fora, repitidas vezes sem formato de invólucro qualquer. Os olhos, ora semi-cerrados, contrastam com a pupíla dilatada desenhada em círculos concêntricos perfeitos, petrificados, loucos e de doçura, num misto sem proporções fixas e definidas. O leve tremor de seu corpo, quase imperceptível a incauto navegante, denota que adentrei por entre as brumas do desconhecido, desbravo terras rudes e selvagens, que escondem nada além do que queres esconder-me, num mistério rasgado e espesso, que me enlouquece e me excita e me vive. Articuladamente respira pelo corpo, morde minha boca com força e delicadeza, desliza sua língua hábil na minha, enleiando-se numa fúria voraz, ora macia, ora tórrida, ora branda. E aspira-me o torso, como se precisasse guardar minha essência em algum lugar intermediário entre seu pulmão e seu ventre. Os sabores naturais de seu corpo necessitam ser trasferidos quase que osmóticamente para os meus sentidos, e degusto deles e você maléficamente retribui, gemendo baixinho, respirando curto e morrendo devagar. Indocilmente me repele e me afasta para que a força que exerço seja maior e meu corpo pese ainda mais sobre o seu, causando-lhe sensação de submissão conquistada, cedida, permitida nas regras inventadas ali mesmo por nós. Toco-lhe o corpo com devoção e desrespeito, juntos e entrelaçados, e seu quadril move-se por vontade própria, buscando minha mais genuína ereção, composta de desejo e impulso, prestes a lhe causar bem e mal, deixando-te cada vez mais ávida e pulsante. Sinto suas cores, claras e pálidas, levemente brilhantes, e dentro de ti a angustia aumenta e arrefece, espremido pela força de suas coxas, pela combinação meticulosa de nossos movimentos, e acaba em catarse lenta e duradoura, expurgando tudo que te – nos – fazia hesitar, destruindo os véus. E dentro dos seus olhos eu vejo toda malícia que quer me ofereçer, e o mundo que goza-te, que te celebra, é afortunado. Sou grato e desfaleço em ti, e a tua imagem junto a complexos mosaicos coloridos formam um presságio de que recomeçar tudo de novo é necessário, quantas vezes for preciso, pra te matar dentro de mim, só um pouco. Congratulo-a, porém sei no meu mais íntimo que não me lê por completo. E temes, és cauta e diferente, e mulher, um pouco minha ao menos.


Departures N.1 by Dustin O'Halloran on Grooveshark

domingo, maio 26, 2013

Já na ida, e na volta.



“Não faça da nossa estória uma ex-tória”


De nascença sou paulista. Paulistano, termo preciso. Minha mãe também, nascida por aqui em algum lugar da zona norte. Ela me contava que quando criança lavava roupa no rio e eu fico hoje me perguntando que tal rio seria esse com água limpa, pra se lavar roupas. A cidade de São Paulo seria incrível se nossos rios fossem limpos, como Paris, como as vias européias em geral. Adotamos normalmente, dos europeus, só o que não nos vale. Minha mãe dizia também que quando moça, seu passatempo com as irmãs, era ir ao circo, e contando-me essas histórias ela fazia uma pintura na descrição, embaraçando as cores vermelhas e amarelas das tendas, com o cheiro dos animais e as apresentações dos Demônios da Garoa. E eu fiquei pensando um pouco, tecendo na minha imaginação, um cenário louco e bucólico, de trás pra frente, onde um palhaço, dando os braços para o ar e sorrindo maniacamente, cantava trem das onze e corria em direção ao público, onde uns riam e outros choravam, de espanto. Ela contava que naquela época era muito comum fazer festa junina nas ruas e ela passava bom tempo com as irmãs recortando bandeirinhas, que seriam presas a barbantes, e por fim enfeitariam os arcos de bambú que passavam de um lado a outro na rua. Fogueira grande e quentão, frio de época. Vez em quando, por aquele tempo, aparecia o tio dela e estacionava o caminhão de carga, sujo de barro do Brasil, e ficava um dia ou dois. Esse homem era tido como um dos mais brutos de toda região e fazia fama com sua crueldade e vilania. Lembrava minha mãe que um dia ele arrancara a orelha de um homem com um único soco, e eu dizia que aquilo era impossível, mas ela replicava, dissertando que seu punho tinha a força de um coice de burro chucro. Que imagem terrível e de triste solidão que fiz de meu tio-avô, temperada com dias de violência e aventura, nas estradas a fora ouvindo uma radiola velha e fumando cigarro sem filtro. E não me lembro ao certo, mas esse meu tio-avô, segundo minha mãe, tinha corpo fechado. Desses tipos que nenhum sincretismo atinge, ilê, ilê camará, nem despacho nem raiz de maniçoba, nada derruba tal cristão com suas rezas e seus guias. Não cheguei a conhecê-lo, nem a seu pai, meu bisavô, que era homem sovina e misantropo. As vezes fico imaginando que vingamos pelo tempo, ao sabor da sorte e do vento. O cenário todo posto em perspectiva de lavadeiras e donas de casa de visão débil pela neblina das cinco da manhã e pela ignorância do androcentrismo natural da década de cinquenta me traz qualquer coisa de familiar ainda. Ela diz sempre, baixinho e com carinho, que o que ela viveu de ruim não quis passar pros filhos, e sem saber me inclui gentilmente no abraço de sua sabedoria. A todos nós, em fato. 



Meu pai vem de cima, como dizem, Pernambuco. Estado lindo, de Recife à Olinda, belezas e cultura, antigo e novo, cores dos carnavais e dos bonecos de gigantes de braços frouxos a pairar na multidão. Porém meu pai vem de região afastada no estado, alguma coisa perto da Bahia, onde antigamente era uma passagem dos missionários que pregavam para população ribeirinha. Uma semelhança com as histórias de minha mãe é o tal do rio, que meu pai me dizia ir pescar quando criança, de manhãzinha, quando o ar ainda não estava quente. Ele contava bem devagar das suas molecagens dos tempos idos, em que pegar goiaba do lado de lá da cerca era sentimento de liberdade, e que juntar três ou quatro amigos para passar a perna e derrubar a professora era motivo de riso solto, e valia a pena o castigo. Meu pai é de dia de São José e tem santo forte. Veio ao mundo numa casa de taipa na beira do rio, como o caboclo das matas, e criou uma fita ligando sua origem até São Paulo, fita acetinada escrita Nosso Senhor do Bonfim. Criou cinco filhos e trabalhou por sete homens, amou por vinte e cinco. A mãe dele disse que nenhum cobertor é curto para os nossos corações quentes. É um algo de dar, dar muito, as vezes até sem sinceridade. A mãe dele dizia que ele nasceu tão rápido que ninguém percebeu. Ela estava sozinha na casa, o marido na lida, e pediu pro meu pai buscar um pouco de água de rio e quando ele voltou já tinha nascido. É confuso, mas é estória. Minha vó tem as mais insólitas, inspiradas talvez em algum escritor de cordel que se perdeu nas tramas do tempo. Certa feita, contava ela, na beira do rio ela viu uma dança de peixes pratedos que voavam por cima das águas, rente a superfície, e eram brilhantes à luz da lua. Na escuridão da noite era possível ver a silhueta de um homem, na margem oposta, tocando uma música de feitiço no acordeão. No dia seguinte encontraram milhares de peixes à margem do velho chico, que foram coletados com a alegria esperançosa do milagre. E eu fico pensando que minha vó é qualquer coisa como de outro mundo, mistura de coisas, pimenta dedo-de-moça vermelha e graúda sobre tábua de madeira rústica. É doce, severa e diligente. Diligência que meu pai herdou. Acho que talvez eu tenha falhado nesse ponto, mas sem querer meu pai ensinou-me a maior lição, sobre a segurança de nossos atos pensando no futuro. E me envolve com sua matuta solidez.


Pensando não tão longe, eu me via correndo descalço nos quintais de cimento queimado. Tínhamos uma árvore de tronco apodrecido, que durante a primavera despencava de coquinhos amarelos, bem redondinhos, minha mãe dizia pra gente que eram venenosos. Claro que um dia eu comi um, só pra verificar a veracidade do dito. Tínhamos um cão. Tínhamos um tanque de pedra. Tínhamos aranhas, muitas aranhas. Tínhamos uns aos outros. Tínhamos uma serra de fita que meu pai usava para fazer espadas e carrinhos para nós, nas horas vagas, usando sobras de chapas de compensado. É simples, é muito simples. Fico pensando nas análises combinatórias que faço mentalmente sobre quantas pessoas são parecidas comigo, conosco, e as combinações são tantas e infinitas, mas ainda assim únicas. 

O dia de hoje foi curioso, eu levantei e me banhei, tomei duas xícaras de café preto, o que talvez explique o bater dos meus dentes. Abri todas as janelas, buscando o ar da primavera e nele encontrar, por sorte, alguma identidade com algo que não mais possuo. Após alguns breves minutos sentindo o vento lambendo-me as faces eu pensei ter adormecido de novo. Foram três batidas suaves na porta que num primeiro momento me fizeram dúvidar da minha audição. Quem haveria de ser? Abri. Pedi que entrassem. Meus fantasmas do passado vieram me visitar hoje, bem cedo, mas aos poucos vão se desvanecendo, com suas cores pálidas, roxas e verdes. Mas eu insisto, na minha solidão rasgada, para que fiquem, pois estou preparando um chá.

Foto: José Carvalho

O Velho Francisco by Chico Buarque on Grooveshark

quinta-feira, maio 23, 2013

Sobre estados de transitoriedade evolutivos.



Tudo começou com uma conversa despretensiosa entre eu e um grande amigo, enquanto tomávamos uma cerveja, e falávamos sobre a vida e coisas do tipo. Era um dia de grandes conquistas, pelo menos para esse amigo meu. Essa conversa despretensiosa era sobre o estado transitório, ou seja, não permanente, da paz e da calmaria nas pessoas do mundo moderno. Parece chato para uma conversa entre amigos, e talvez seja mesmo, mas as vezes odiar o mundo por algumas horas e duvidar de todas suas crenças e certezas, tomando algum álcool de preferência, nos faz sentir melhores para seguir adiante. Pois bem, não divergindo do assunto, estávamos falando sobre a paz, e lhe garanto, como garanti ao meu amigo em nossa conversa, que o ser humano não busca paz, e por vezes até a rejeita ou adia. Isso causou-lhe uma certa perplexidade, que pediu mais explicações, pois como não haveríamos de buscar a paz, se esta traria igualdade, sem vítimas de guerra e sobretudo com oferta de recursos a todos. Eu lhe disse que devemos pensar no ser humano como ser inquieto e pensante. O ser humano é único bicho que se exercita por conta própria, enfrentando academias lotadas, e ainda por cima pagando por isso, apenas para melhorar a aparência. O ser humano possui diversos passatempos, filmes, teatro, jogos, cartas, videogames, internet, redes sociais, sexo recreativo, imaginação, que em parte atenua o tédio das nossas existências. Porém, quando esse tédio chega a níveis alarmantes, o ser humano precisa perturbar o ambiente, causar intriga, irritar, provocar e agredir, sem nenhuma outra razão a não ser espantar a pasmaceira, mudar o cenário da quietude, varrer a estagnação. E com isso fazemos surgir o risco e conseguimos dias de mais aventura. Como já dizia Eça de Queiroz “É a paz que, dando os vagares da imaginação - causa as impaciências do desejo”. E, de fato, isso pra mim é um mantra e já foi repetido muitas vezes anteriormente por diversos pensadores de grande porte como Vergílio Ferreira e Dostoiévski. Porém, me intriga em fazer uma conexão deste comportamento com a própria evolução da espécie humana. Vejamos um claro exemplo, se o desejo mais interior do ser humano não fosse a guerra, não teríamos ambições, o mundo seria um único império, e ouso a dizer que grandes impérios nunca seriam desfeitos, pois da inquietação e do desafio vem a quebra do jugo da escravidão e dos cabrestos e dos tabus. A paz é estado ilusório, ela não existe de fato; existe como conceito ou ainda como algo a ser alcançado, conquistado, como um Éden, sentar num morro verde ao lado de um cão alegre e olhando o céu azul, balançar na rede e sentir a natureza beijando-nos a face. A paz é para ser conquistada. E uma vez conquistada o que vocês acreditam que acontece levando em consideração nossa natureza? Nós não gostamos de conquista, mas de conquistar. E logo em seguida, outra guerra perturba-nos a alma. Não seria então um estado evolutivo de todos nós de buscarmos sempre a própria degradação para ressurgirmos melhores, mais adaptados, mais pensantes, mais agudos, com mais recursos. Sem a nossa inquietação nada seria como é, não teríamos os grandes prédios, as grandes construções, as revoluções de classe e de credo e das raças, não teríamos as grandes paixões, os furtivos adultérios, e não se entenderia o poder libertador de se encontar miserável e ainda assim buscar dias melhores. Inclusive nas áreas das artes e das ciências, as grandes produções e descobertas advém de um periodo de guerra ou pós-guerra; a necessidade e a dor move-nos. Um dos exemplos mais belos que eu posso citar é encontrado na figura acima, uma obra de Pablo Picasso, chamada Guernica (Clique na imgem pra visualizar em tamanho grande). A pintura é de uma beleza terrível, retratando o bombardeio sofrido pela cidade espanhola de Guernica em 26 de abril de 1937, por aviões alemães que apoiavam o ditador Franco. O sofrimento causado pela guerra foi o combustível para criação artística de Picasso, assim como foram suas paixões, suas esposas e suas amantes.
Seguindo essa dicotomia, após a guerra ou turbulência os que foram derrotados se vestem de um sentimento, indissolúvel, de tentar mais uma vez sua sorte, cara ou coroa três vezes, melhor de três no zerinho ou um, revanche no baralho; os derrotados são os mais inquietos, e os mais felizes em contraponto. Os vencedores, por sua vez, logo necessitam de outro passatempo, pois a paz é enfadonha, aborrecida, sacal, é muita marola, e pouca onda.  Gostamos de onda, de preferência enorme, impossível de domar, pois no desafio cresce o sentimento dos conquistadores, de se vencer a si próprio, superar a si próprio, vencer aquela corrida, aquela partida de futebol e de conquistar aquela pessoa especial. Isso descarrega ondas de prazer imensas em nosso cérebro, dizendo-nos, como uma mensagem bioquímica, que desafiar, e sobretudo desafiar-nos a nós mesmos, nos é incrivelmente vantajoso. É daí que penso, é evolutivo, é o que nos difere dos antepassados ou ainda de outros animais, não nos basta nascer, crescer, reproduzir e morrer. As aulas de ciência básica para as crianças deveriam mudar essa máxima, passando por cima de suas recorrentes hipocresias. Um modo mais honesto seria: Nascer, crescer, batalhar e morrer. Reproduzir é opcional, ir à batalha não.
E desse modo nossa conversa seguiu por muitos minutos. Esse meu amigo hoje mudou o rumo da vida mirando em outros objetivos, completamente diferentes dos seus iniciais. No caso dele, investir em outra carreira e outros horizontes trouxeram muitas oportunidades de crescimento e me senti orgulhoso e feliz por ele.  Por um momento me veio na mente que deveria fazer o mesmo que ele, e começar do zero e rascunhar tudo de novo, em novos ares, cabeças e pessoas. Porém me assombra a idéia de me sentir vazio, oco e ressonante, quando chegar lá, no novo alvo, no novo objetivo primordial. E assim eu vou adiando um pouco e guerreando comigo mesmo até tornar-se inevitável. A inevitabilidade das mudanças, contudo, é outro assunto, talvez mais complicado que esse. 

segunda-feira, maio 20, 2013

Saudade



Se saudade tivesse nome ela se chamaria você.
Pois você sabe o motivo.
Você sabe que sim, que te sinto.
Você está presente em mim, em todos os milisegundos fragmentados da minha vida.
E andar seria fácil, por você,
Ainda que difícil.
Você está sempre perto e insistentemente.

Você,
Afago ceifado
E suspiro-dos-jardins ao vento.
Você,
Amores malogrados na retina do tempo.

quarta-feira, maio 08, 2013

Fugir é instinto, fingir é humano

“O que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o.
[...] Apague as pegadas”.


Bertold Brecht



Não há ninguém aqui, meu bem, minha querida, fujamos. Sei, claro que sei que não podes. O quê? Quem vem lá? Quem vem lá? Fique tranquila. Estamos bem, só tomando um drinque, estamos cercados de pessoas. É perigoso aqui, eu sei que é. Me dê sua mão. É claro, claro que sei que é inadequado, mas podemos apenas disfarçar? Eles estão vindo aí, é melhor nos separarmos para o bem, veja, cuidado. Me encontre no chafariz, ali à frente. O quê? Vais demorar? Olhe, cuidado com quem falas, e o que falas, se lhe pegam pode ser tarde demais. Disse alguém que estaríamos aqui? É claro que eu não disse a ninguém! Ou tu achas que não mensuro consequências. O amanhã tardará a chegar, precisamos de precaução, precaução e estratégia. Veja, estou indo, não é mais seguro. Vês aquele homem atravessando a rua? cabelo baixo, meio louro, cara de polaco, se chegando... Vá, vá de uma vez. Estou indo-me também.
Embora saiba que ela não vá falar com ele, eu aposto, tão certo como estou dando passos agora que... Ah! bobagens, ande homem, ande. Ninguém pode vê-lo, ninguém. E se acaso encontrar outros e outras no caminho? Apresse-se, vamos. Um pé depois do outro, um pé depois do outro. Olhando pra baixo, olhe pra baixo. Será que é vergonhoso? Será? O que pensas? O que mereço? E tu, como vieste parar aqui? Chafariz, chafariz, chafariz... Mas que merda, tinha que dar essa chuva. Ela não está aqui ainda. Medo mortal que me assombra. Nos assombra. Acho que na verdade lhe assombra mais, não é, não é? Diga-lá, diga por Deus, pelo Diabo!


Onde estavas, ninguém a seguiu? Tens certeza? É, de fato, concordo contigo. É bom e prudente andarmos, andemos. O quê? Quem lhe perguntou isso? Não, claro que não os contei sobre isso. Ainda louco não estou. Mas é melhor mesmo, nem um pio. Boca de siri. Estás ofegante, que sentes?, dor no peito, estás cansada? Eu também, ofego, busco folêgo e a respiração vai rápida, vai sôfrega. Toma, pega um cigarro, deves estar aos nervos. Dobra aqui, nesse beco, dobra aqui, é melhor. Não, é claro que nada vai dar errado. Pula essas poças d’água e não se preocupe com os mendigos, são inofensivos, venha, venha rápido. Oh, meu Deus, caíste! Que acontece? Machucaste o joelho? Estás bem? Já estamos chegando, calma lá. Eu sei que estás cansada, eu também, mas o que podemos fazer, além de fugir, fugir e fugir. O quê? Você está pensando em... Não, é claro que não está pensando nisso. Eles entenderiam? Não sei. E você pode se machucar feio com isso. Eu seguraria na sua mão, como sempre, como sempre. Mas é o que queres? Não... Bom, desconfiava a princípio. Então continuemos, embrenhe aqui nessa escuridão. Tenha coragem, é o único jeito. Pulemos essa grade, pulemos. Ali está um cobertinho, ninguém irá nos ver. O quê? A lâmpada? Me alcançe aquele pedaço de pau. Pronto, resolvido. Não havia outro jeito, tive que estilhaçá-la, é por nosso bem. Venha, chegue mais perto, está chovendo. Tome, vista minha blusa, irá lhe proteger do vento. Não, eu não penso como você, acho que poderíamos sim, sim poderíamos. Mas isso não importa agora. Venha cá, pois preciso tanto de ti. Não há ninguém aqui, estamos seguros, me beija, me beija agora.




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