"Os grandes artistas não são os copistas do mundo, são os seus rivais."
André Malraux
Essa roda viva gira dentro de mim e eu não posso pará-la, como você deseja, como gostaria.
Tirar-me de mim mais uma vez é necessário. E partir. Partir é vital. É visceral, é urgência e não superfície... ilusão.
Ilusão talvez todos sejamos e eu preciso sair dessa carne, essa carne não presta. Comunicador com o mundo exterior a fim de dissolver alguma angústia.
E que me difere de ti? O que nos difere?
Talvez nada além de um bater de um sino que ecôa em minha mente, nada além de alguns fios orgânicos presos em meus pulsos e calcanhares. Talvez nada, a não ser essa névoa roxa, brilhante e etérea, que exalo das minhas narinas quando respiro.
“Vai pra onde, vai com quem, volta a que horas?”
“Vou pra longe, vou com muitos, talvez não volte”
Na surdina da noite, o debilitante véu da moral apática se desfaz, eu gozo, no riso, eu choro... Talvez por você?
Os meus lábios coloridos eu vejo atráves de uma fina película metálica refletindo meu rosto. Está na hora.
Dois homens sentados, estão de chapéu, mais alguns ao fundo, bem vestidos. Poucas mulheres, conto três. A audiência é esparsa e vaga, composta em sua maioria de homens, alguns com semblante de agonia, ou ciúme. A textura dos tecidos das cortinas tocam meu rosto. É particular a sensação que causam. O cheiro é de piso de madeira e cigarros sem filtro. O silêncio é material. O silêncio então existe.
Não confundam meus amores e meus dias e meus sexos. Me batam na cara, me amem, me amarrem em uma corda e me lançem a dez metros de altura e eu voltarei. Voltarei para dormir em seus sonhos.
"Com o tempo não
vamos ficando sozinhos apenas pelos que se foram: vamos ficando sozinhos uns
dos outros."
Mario Quintana
“Vamos lá hoje?” Disse ela, baixinho, com uma ansiedade
muda.
“Ahn?” Disse ele, atordoado, olhando para tevê algo sem
importância em volume bem baixo. “Onde?”
“Você não lembra Arnaldo? Bom deixa pra lá...” Olha as
unhas. “Vai fazer o quê hoje?”
“Nada, trabalhar... O de sempre. Mais tarde vou ao banco” O
silêncio dura dez minutos.
“Amanhã minha mãe quer que a gente a leve naquele restaurante”
Diz ele dando um gole no café já frio.
“Que restaurante, Arnaldo?” A mulher replica sem olhar pro
marido.
“Odete, como que restaurante, aquele que a gente se
conheçeu... Fantasiando um segredo no
ponto onde quer chegar...” Cantarola ele, baixinho.
“Ai Arnaldo, aquela pocilga... Bah, vamos então. Mas eu vou
levar o meu próprio papel higiênico. Os de lá são tão finos que molham meus
dedos” Diz a mulher levemente contrariada.
“Tá bom.” Responde o homem fazendo cara que estava pensando
em algo diferente “Mas e aquele dia, fez um sol de matar, era um sábado... Né,
Odete?”
“Ahn?” Após a indagação dela, um novo silêncio, agora de
quinze minutos.
“Vai fritar bifes ou façamos o frango assado?”
“Não sei, tu que sabes.” Agora ela está olhando uma revista
velha, sentada a mesa. “Melhor algo rápido, mais tarde tenho uma reunião com o
João.”
“Bifes então.” Responde automaticamente
“Os seus pais continuam os mesmos, não é Arnaldo?” Diz ela em
tom de sarcasmo.
“Sei lá...” Responde, trocando de canal na tevê “Jogão de
bola, Palmeiras e Corinthians. Uma vez fomos em um jogo de futebol. Lembra
Odete? Você se divertiu horrores. E o Benedito foi junto com a gente. Lembra? ”
Diz sorrindo “Você estava toda vaporosa, causando a confusão entre os homens...
Ah, estava linda!”
“Benedito morreu, né?” Diz ela seca, sem pesar.
“Morreu, câncer” Responde o homem olhando para os botões do
controle remoto.
“Vou fritar os bifes, então” Diz a mulher levantanto-se
ligeiramente da cadeira.
Arnaldo se apruma no sofá e afofa uma almofada.
“Ei, Odete, já que estamos aqui sem fazer nada... quer
relembrar os velhos tempos do banco de trás do meu opala?” Diz Arnaldo gritando
para a mulher na cozinha.
“Ai velho, vai tomar banho. Piadinha agora não. Podia pegar
uma vassoura e varrer aquele quintal cheio de merda de cachorro.” Grita a
mulher de volta, batendo umas panelas.
“Há, Odete, você é mesmo um máximo. Não muda nunca.” Disse
engolindo seco alguma coisa que havia se formado em sua garganta.
Após alguns minutos de tevê quase muda a mulher chega de
volta a sala:
“Hoje eu chego tarde, viu?” Disse ela, sem dar importância.
“Eu também” Disse, também sem se importar muito. “Vou ao
clube, dominó das quartas-feiras”
“Ahn...” Arrumando o busto no vestido.
“A casa está muito vazia sem os meninos aqui” Diz ele “vamos
para um lugar menor?”
“O Albertinho vez em quando ta por aqui, precisamos desse
quarto extra” Diz a mulher ajeitando as sobrancelhas olhando em um espelhinho
que acabara de tirar da bolsa
“E quando começamos. Lembra? Eramos eu, você em apartamento
pequeno. Pintei a casa toda. Lixei os batentes. Enceramos os tacos com cera de
carnaúba e colacamos um antúrio na janela” Diz Arnaldo, passando a mão nos
cabelos e olhando em um ponto fixo que parecia estar no passado.
“É verdade” Diz a mulher estalando a boca após passar um
batom cor marrom “Estou bonita?”
“Claro” Diz Arnaldo.
“Que acha desse meu novo vestido?” Diz despretenciosa.
“É novo? Bonito” Indaga Arnaldo curioso. Na verdade estava
sendo educado.
“Os bifes estão na panela, estou de saída...” Diz pegando a
bolsa.
“Tá bom” Arnaldo responde quase ao mesmo tempo que Odete.
“Quando eu voltar eu como alguma coisa, se estiver com fome”
Diz a mulher.
“Sim” Automaticamente.
Odete beija Arnaldo na fronte.
“Tchau velho”
“Tchau, mulher” diz olhando novamente pra tevê. “Te amo”
murmura Arnaldo, bem baixo, depois de Odete já ter batido a porta forte.
Queria
estender-lhe a mão e afastar os fios de cabelo que lhes tocam a face, pô-los
por detrás de sua orelha para olhar em seus olhos negros, fundos, e entender o
que escondes por trás de tantas minúcias. De tantas mãos nervosas e trêmulas,
com unhas levemente roídas, fazendo dançar entre os dedos uma chave - seria de
sua casa? - queria entender o que se passa por detrás desse profundo rio plácido.
As suas águas tenho certeza que transbordam calmas para lhe refletir na face
essa mansidão de menina-mulher serena, mas por trás de suas nuanças esconderias
tu águas caudalosas e cálidas, turbulentas e de impetuosa paixão que te
fraquejariam as pernas e me trepidaria o juízo. E seu juízo, queria compreender
por trás dessa tua saia rodada de moça e me emaranhar nela como se me deitasse
no campo das flores da qual é composta, para sentir-lhe o cheiro e garantir que
minhas mãos entendam sua textura e a gravem em uma memória particular e
inacessível. Entenderia melhor seus mecanismos e seus meandros se te possuísse
de uma maneira maléfica, a fim de te fazer mal, todo mal que me causas, mas
extenuante mal, para que finalmente sua língua deslizando entre os dentes me
contasse uma verdade que já desconfiava? E sentiria seu hálito próximo ao meu a
me embriagar, em um lânguido pecado com gosto de sal e terra vermelha, e tuas
unhas em minhas costas, em meu corpo que almejara em teus mais limpos lençóis,
com tua boca mais vermelha a me beijar como se não houvesse amanhã, em tuas
pernas montadas como um lindo esquadro - será então que entenderia o que se passa
por trás desse espesso véu de secreta cumplicidade quando me olhas? Às suas
minúcias jaz, quase invisível, uma aura que a faz emitir calor, porém
imperceptível aos tolos.