sábado, outubro 18, 2008

Sobre o Amor e Outras Coisas

“As famílias felizes parecem-se todas;
as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”
Tolstoi, Leon


“E quanto ao menino, que faremos?”. Ele estava distraído brincando no chão de cimento queimado enquanto os dois planejavam o seu destino. De maneira alheia ao seu próprio e incerto futuro brincava e cantarolava baixinho sem abrir a boca, só deixando fluir pela caixa torácica alguns sons que reverberavam pelo seu ser e deixavam no ar uma melodia oca, que lembrava uma música de Elvis. “À merda você, com seus imprevistos, e suas desculpas!”, gritava a mulher do lado de dentro da casa. Pouco sabia do mote da discussão e as poucas palavras que chegavam a seu ouvido eram como poeiras, iguais às poeiras do chão, que vinham das terras secas de um jardim mal cuidado e com rosas murchas e mortas. Tampouco podia fazer algo a respeito, nem se atreveria a tanto, visto que da ultima vez fatídica em que se fez interar do assunto foi surrado de cinta e haveria de se lembrar disso o resto de sua vida. Nas vezes em que havia paz na casa sentia-se um menino normal, com trejeitos normais pra um menino de sete anos, e quase foi feliz nessa época. Desde muito cedo associava felicidade com momentos, curtos, efêmeros, saborosos, como pedaços de abacaxi ácidos em uma farofa tropical. Essa associação de felicidade a momentos esparsos não foi suficiente para lhe tirar a alegria de viver, que desde muito cedo entendeu também que era própria das crianças e que viria a perdê-la, cedo ou tarde, por enfastio e morosidades afins. Mas, além disso, pensava pouco no dia inevitável, aquele dia que poucos conseguem marcar num calendário. Quando se percebe já foi e não há nada que se possa fazer a respeito; um dia tornar-se-ia um adulto por alguma dor ou desgosto, ou puro convencionalismo mesmo – Não se pode ser criança para sempre. O homem do lado de dentro da casa estava muito nervoso a respeito, ou despeito, de assuntos que a mulher pugnava exigindo respostas. Não havia vagabundas, nem prostíbulos, tampouco outra mulher e filhos. Falácias. E o menino a brincar, no meio de tanta merda e sujeira. E diante de tais impropérios crescia uma consciência juvenil precoce. Um amadurecimento forçado. Estavam-no enrolando em um jornal como uma fruta verde, e esse calor de matar sufocava qualquer resistência de uma infância seqüenciada. Nascer, crescer, reproduzir, morrer. Enfim, a quarta parada estava longe e ele queria dormir e não acordar mais.
Lembrava quando seu pai lhe dava castanhas de lata para mastigar enquanto o velho homem bebericava alguma coisa, quase sempre uma cerveja. Porém, nunca associara até a idade adulta o álcool com atitudes violentas e marginalizáveis. Sempre achou normal esse comportamento dos mais velhos e, certas feitas em que ainda havia festas na casa, que depois de algum tempo cessaram por completo e cerraram a casa num denso ar de luto sem defunto, até bebeu goles de cerveja, imprudentemente, pegando os copos com atos furtivos da mesa em que os adultos estavam jogando canastra. Não entendia por que sua tia, irmã de sua mãe, implicava tanto com o fato de existirem bebidas na casa. Foi mais ou menos nessa idade que o menino viveu suas aventuras mais insólitas, que custavam a tornar-se realidade longe das paredes descascadas e carcomidas de sua casa velha com telhas de barro e piso de tacos salteados. As aventuras, que por volta de seus trinta anos iria lembrar-se e custar a acreditar, em sua mente eram-lhe tão reais.
De fato crianças têm imaginação fecunda para situações como essa, mas excetuando-se a feita em que lhe deram uma chavinha dourada dizendo que se tratava de uma peça rara e que existia um baú de tesouro que encaixaria perfeitamente a ela dando-lhe acesso a um mundo de riquezas, poucas vezes ornamentava ou dava floreios aos pensamentos imberbes e juvenis. Tanto mais pelo fato de seus irmãos prontamente desmentirem a história de tesouros e afins, assim que sua mãe virava as costas. Um estado quebradiço e uma consternação vinham à tona toda vez que se percebia enganado. Ficava dias sorrindo como se seu sorriso não encaixasse nas expressões vazias de seus olhos. Depois disso custaria a acreditar de novo em coisas fantasiosas, porém nas insólitas era impossível não acreditar, pois se tratava de algo além de sua imaginação, além de seu reconhecimento mundano e de falsa segurança que tinha em seu lar. Muitas vezes, por ocasiões diversas, pulavam pessoas em seu quintal. Mas um certo dia um momento de horror foi introduzido na casa por um ser até então desconhecido. A avó sempre lhe alertava a respeito de sacis e seres da floresta, porém nunca lhe deu crédito algum. Estava bem vedado contra crendices, e as situações inusitadas escolhem exatamente estas ocasiões de descrença para desbancar nossa certeza de todas as coisas. Foi no fim de uma festa, com muita cerveja, e muita carne de vaca, e costela. Os ossos jogados para o cachorro tornavam-se um deleite nos dentes afiados dele, porém o tornava uma arma em potencial, pronto para ferir a quem passasse perto. À noitinha, todos já haviam saído e o céu estava límpido e gelado. E a mulher pôs logo suas crias pra dentro e começou a fechar a casa, com presteza e cantarolando como sempre fazia e que posteriormente o menino também o faria após contrair o hábito. De repente ouviu-se um barulho seco, um estrépito, de madeira sendo golpeada e todos se sobressaltaram, e o barulho intensificou. O cachorro enfiou-se em seu covil e o ser que açoitava o portão de madeira urrava. Ninguém acreditava naquilo como situação real, mas era possível sentir um cheiro de animal passando pelas frestas do portão, um cheiro de animal grande e raivoso, e era quase possível ver os pelos eriçados em seu pescoço e sentir o calor de seu corpo colossal. A mãe após uns e outros gritos de loucura acolheu seus filhos embaixo da asa como pintinhos. E o barulho persistiu, persistiu, persistiu e cessou. Misteriosamente cessou, da mesma forma que veio. E todos ficaram abraçados muito juntos, muito pertos, muito calorosamente unidos, e podia até se ver um meio sorriso na face angelical do menino, quando o ser supostamente se foi.
Os barulhos cessaram também dentro da casa agora que o menino resolvera levantar do chão de cimento queimado para beber um copo d’água. E o cenário dentro de sua sala e cozinha era de destruição, e cadeira quebradas e um vidro estilhaçado, provavelmente de um copo ou jarra de suco. Um prato, com resquícios de arroz e farinha e salada e vinagre, estava estranhamente agrupado no chão e o menino driblou e pulou todos obstáculos. Puxou uma cadeira e pôs no pé do armário da cozinha, subiu nela. Abriu a porta mais acima e pegou um copo. Foi até o filtro e colocou um pouco de água. Bebeu tranqüilamente. Juntou os cacos e ajeitou as cadeiras no lugar, tudo como deveria ser. Puxou a toalha da mesa e colocou o vaso com flores de plástico que estava por uma casualidade do destino embaixo da pia agora. E tentou ajeitar as coisas. Sentou-se na escada que dava acesso ao quintal dos fundos e viu os dois se abraçando, silenciosamente, como se uma nuvem os entrelaçasse e nada pudesse atingi-los. Cruzou os braços e apoiou a cabeça nos joelhos e ficou tão indefinidamente ali quanto indefinidamente durou o abraço. Após alguns anos ele haveria de se lembrar o dia em que se tornara um adulto, forçadamente. Mas a imagem que marcou mais profundamente sua alma, após tantos amores enviesados, foi o abraço dos pais no quintal dos fundos naquele dia de calor, pois sabia que em toda sua jornada talvez não encontrasse um amor daqueles.


Ray Charles - Georgia On My Mind

4 comentários:

Unknown disse...

Lindo lindo lindo.. ameiii!! lembrei da nossa infância.. rs
Vc manda muitooo bem viuu!!
Te amo Juuu... BjO*

Patricia disse...

que lindo, Ju. Acho muito legais esses dias que são divisores de água nas nossas vidas. Que fazem com que tudo passe a ser enchergado de forma diferente. Uma vez pegou fogo uma loja ao lado do prédio onde eu morava, e eu precisei ir pra rua, de pijamas e tudo, assistir ao incêndio e ao trabalho dos bombeiros. Depois daquele dia passei a ver a vida de maneira mais sóbria!
beijo!!! =*

maah - disse...

Eu nunca tive paciência para ler, mas hoje eu lí. Confesso que vou ter que ler mais uma vez, pois algo ficou incompreendído na minha memória. Enfim, às vezes parece que com a mesma velocidade que vem a tempestade, vem a calmaria. É engraçado, como muitos de nós, ás vezes fingíamos estar tão concentrados em nossas brincadeiras, p/ não demonstrar aos pais o quanto noa magoava vê-los alí, brigando, se ofendendo, sendo que minutos depois estariam a se amar novamente.
Eu sempre fingia que não estava ouvindo... Mal sabe eles!

Saudades menino.

=*

Anônimo disse...

Ah quanto tempo não comento em seus textos Juninho* [culpa da correria da fuvest e da vunesp], mas estou aqui hein; não me canso de apreciar a boa obra que você produz através da humanidade da língua portuguesa.

O que dizer deste texto?
Melhor dizendo, o que você sentiu ao criá-lo? o que terá vivido, para trasmitir tão profundamente essa relação familiar?

Hoje e dia a sociedade está sem fraternidade portanto não há evolução da caridade e do amor, porque cada um pensa em si e não no próximo; até mesmo em famílias, a falta de um alicerce que sustente o que é puro e agradável ao coração, desequilíbra a estrutura individual de um membro.

Porque as coisas são assim? Porque o mundo é tão cruel? Como será quando tudo mudar [de preferência para melhor]?
Haverá tudo que compõem essa sua composição literária.

Um abraço*

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