segunda-feira, março 26, 2012

Natureza Morta

"De homem a homem verdadeiro, o caminho passa pelo homem louco."

Michel Foucault


Uma aranha estaticamente parada em uma folha orvalhada esperava sua presa e a formiga apenas subia a caminho de sua morada. Um homem caminhava na rua em direção ao posto de gasolina, em busca de uma loja de conveniências, que lhe vendesse cigarros as 11:14 da noite, pois sofria de insônia, pensando no trabalho, no relatório, no artigo, na produtividade, na ulcera péptica. A formiga subia, a aranha esperava. O homem se embrenhou rapidamente por entre as ruas escuras, com os olhos arregalados, vigilante. A formiga mal sabia do enorme perigo que lhe esperava bem a frente: a aranha predadora quieta e impávida, calma e irresoluta que apenas aguardava. A formiga apenas fazia o que tinha que fazer. Roendo as unhas o homem apressou o passo, parecia estar sendo seguido, coçou a cabeça freneticamente até sentir um filete quente de sangue escorrer‑lhe pela nuca. Um cheiro de ferro entrou-lhe pelas narinas quando ele tentou retirar os restos de pele debaixo das unhas enegrecidas. A aranha estava perfeitamente estática e sabia que a formiga, guiando-se por rastros químicos passaria por ali, ou não, porém independente das reais razões que a levaram até ali isso não muda o rumo das coisas. Enquanto isso a formiga, o ser andante, que nunca levanta a cabeça e sempre anda em direção sabe-se lá para onde, carregando um fardo muitas vezes mais pesado que o seu próprio corpo, para um bem maior e coletivo - alimentar os seus – nada queria, nada ansiava, nada temia, apenas andava. Compulsivamente e ciclicamente o homem pensava “esse porra não chega!” e apressou o passo quando ouviu um ronco alto de um motor de moto aproximando nas suas costas, aparentemente em alta velocidade. Existem certos momentos na vida que a gente se depara com uma clareza tão absurda que é até bonito, e um homem em busca de cigarros às 11:14 está longe disso. A aranha nem faz idéia, mas a formiga esta cada vez mais perto e perto, subindo e perscrutando os sulcos da folha, gerando uma vibração quase imperceptível, porém estrondosa para o sentido aguçado do aracnídeo. A moto estrondosa passa escandalosamente pela rua e ensurdesse os sentidos do homem - o coração vai na garganta. Se ao menos tivesse um cigarro. O medo gelava sua espinha, esmagava a sua alma. O suor fazia a sua roupa grudar no corpo e exalar um cheiro azedo, de animal acuado. A formiga não tinha medo, como poderia, não era dotada de um lobo temporal altamente desenvolvido. Entrou na conveniência “me dá um cigarro”. “Qual?” “Qualquer um” “Marlboro, Derby...?” “Qualquer um, você é surda?”. Pegou o cigarro “ Fica com o troco”. Desesperadamente tentava abrir o maço de cigarros com a mão trêmula e molhada de suor utilizando-se de esforço sobre-humano para retirar aquele maldito plástico protetor superior. Meteu a mão nos bolsos. Sem fósforos. SEM FÓSFOROS! Entrou de novo na conveniência engolindo seco a vergonha em nome de uma tragada – vício, palavra crua. Saiu de cabeça baixa e passo apressado, riscando o fósforo que acabara de comprar. Ao olhar pra trás viu o frentista entrar na conveniência e cochichar com a atendente, deviam estar falando dele, só podiam estar falando dele. Será que o frentista viria tirar satisfação? Pensou em uma resposta rápida, depois pensou na rota de fuga mais próxima, quando menos percebeu sua mão já estava pronta para um soco, se solicitada, dentro de seu bolso. Enquanto isso, a aranha estimulava suas glândulas e sistemas e afins. O homem continuou andando, suando frio. A formiga andando, andando, andando, andando. Este é o passo limítrofe que divide as situações reversíveis das coisas que não podemos mais reverter. A aranha sentiu a formiga com suas patas agarrou-a e rapidamente envolveu-a com sua teia. A formiga tentou lutar mas foi como deveria ser. A formiga foi devorada e digerida lentamente pela aranha que satisfez sua necessidade basal de sobrevivência. O homem voltou pra casa e fumou o seu cigarro. Tudo estava em equilíbrio, novamente.


Non, Je Ne Regrette Rien by Edith Piaf on Grooveshark

Um comentário:

Juju disse...

Que fase, hein? Belíssimo... vou ficar pensando horas nele! E não poderia haver melhor escolha de música também! Parabéns pelo talento e pela retomada!

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