Descendo pelas brancas falésias de Albion, eu
pensava em nada. Algumas poucas coisas pululavam em minha mente, de natureza
aleatória e cíclica. O veículo me conduzia por reinos e destinos diversos. Por
quais caminhos e por onde iremos parar talvez seja uma pergunta muito complexa.
O clima era quente e ameno e as pessoas se espremiam na charrete. Eu pensava
que deveria estar pensando em algo. Que tudo que havia acabado de acontecer
deveria me avivar as memórias mais profundas. Porém, nada. Nada me ocorreu por
um bom tempo. Eu ficava pensando em Dom João V, e o que ele estaria pensando no
momento. Talvez em alguma bobagem, frívola, que imediatamente o levaria a
preguiça, ao tédio, e ao desejo em freiras do convento da capela real; que se
entregavam por obrigação, gemiam, suavam e faziam prole; que tornavam-se
freiras que por sua vez davam a luz a novos filhos bastardos que habitariam o
palácio do marquês de Louriçal, na zona Palhavã. Pensamentos encíclicos em
caminhos bifurcados, que bifurcavam novamente mais à frente, de novo e de novo,
cento e noventa e seis vezes, retornavam; e eu me dava conta do labirinto em
que habitava. Arrebatado pela calma resignação, eu cumpri boa parte do caminho
sem que ao menos um pensamento persistisse em minha cabeça; fiquei pensando
talvez em por que o rio chamava amazonas, por causa do estado ou o contrário
era verdadeiro, num se-e-somente-se, talvez. O rio correu e desceu a
ribanceira, me atingindo com força. O tempo todo, todo o tempo. O tempo é
sempre. Comecei a reconhecer as veredas de minha mente cada vez que passava
mais de uma vez por um lugar, por uma porta gigante de carvalho maciço – que
atrás abrigava dois tigres em um saguão de pedra lisa; um laranja e um branco,
ambos rajados – por paredes sólidas e frias, por brumas elétricas. Reajustando
e recalculando meu caminho. Eu lembrava muito bem de um homem com feições de um
réptil quelônio, nariz gordo e com marcas do tempo, feito pequenos buracos,
quase careca e parecendo tediosamente caridoso. Ele ficou horas e horas – cento
e noventa e seis horas – falando coisas incompreensíveis a mim, outorgando,
constituindo, previsto nos ditames, incluso na minuta, inscrita no número dois
cinco quatro sete dois, mil vezes. Eu via a boca do homem mexer, eu via outro
homem sentado na mesa atrás, indiferente ao mundo ao redor. Eu olhava você
chorar. Às vezes tossia. Eu não soube o que fazer, minha mente simplesmente não
soube.
A mente ia longe já. Estávamos os dois sentados
numa mesa em frente a um restaurante qualquer na Avenida Sarandi, em
Montevidéu, tomando uma taça de cerveja e apreciando o vaivém das pessoas,
algumas apressadas, outras calmas e sorridentes. Alguns grupos de jovens
passavam fazendo estardalhaço falando em castellano,
que soava como romance aos ouvidos. Nada fizemos para mudar o mundo naquele
instante, apenas existimos, lado a lado, neste fragmento de tempo. Acho que no
tempo anterior, que era o presente, também estávamos lado a lado. Existimos
para tudo de uma vez, numa esquina. Você parecia linda e eu parecia feliz; por
hora realmente devo ter acreditado em tal façanha de Deus e me julguei um
viajante do tempo. Nesse dia em particular, no qual vivia presentemente, porém
já estava incluso num passado truncado, ficamos ébrios, andamos feito loucos,
da praça da independência até o porto – comemos um naco de carne que assava ao
lado de grandes pimentões vermelhos e amarelos numa churrasqueira de um
quiosque em um mercado bagunçado e escuro. O som de um saxofone melancólico
soava no ar e um casal ao lado dublava baixinho “No importa la razon para amar te”. Uma sensação de choque elétrico
percorreu minha espinha e de repente vi, em apenas um dos meus olhos, uma flor
de papel crepom azul.
Você estava ao meu lado ainda, ou talvez fosse
mais um pedaço de passado truncado no meu presente, que dessa vez nem mesmo
sabia onde se encontrava. A flor de papel crepom azul era feita à mão por
crianças de rua que trabalhavam forçadas nos desertos da pobreza da América.
Não tinham valor. As flores de crepom azul são antagonistas de si próprias.
Frases aleatórias sobre teorias teológicas me recordaram da dualidade do mundo;
onde há um bom, haverá um mal, onde há um tigre, haverá um dragão, para cada
defeito teu, há uma qualidade que os anulam, e no céu deverá tudo ser
balanceado em perfeita harmonia, pois os próprios sábios da babilônia já
preconizavam tal pensamento desde o século III antes de cristo. Dessa forma, eu
tive uma epifania, e me prostrei diante de tal; para cada flor de crepom feita
por uma criança de rua seminua e de rosto sujo, uma flor nos jardins da América
nascia.
Eu estava titubeante entre o passado e presente
entrelaçados entre si. Mas voltamos ao nosso papo, na Avenida Sarandi, porém de
canto de olho eu vi um homem velho abordando duas crianças e metendo no bolso o
pouco dinheiro que eu acabara de lhes dar. Eu me lembro que voltamos a nossa
hospedaria, naquele dia, que é hoje, e abrimos a janela que dava frente a
estátua do General Artigas. A noite ia alta e quente e nos amamos como dois
namorados, pois beijei-lhe a boca e disse que a amava, em seu rosto e em seu corpo,
enamorado. Eu lembro muito bem de cada detalhe, real ou inventado, daqueles
dias, que são hoje, o camaleão andando calmo nas terras agrestes dos jardins,
os cachorros de rua, o cachorro empalhado, o sol, o sol... O rio da prata, as
praias, o delírio, as bicicletas, o vento, o chivito com ovo extra. A flor de crepom sobreviveu à passagem
rigorosa dos dias, em uma pequena botella
de alumínio, no lado esquerdo do meu cérebro. Ela ficou ali parada, enfeitando
o ambiente e minha memória. Nossos amores passados, nossos próprios amores
passados, que foram agora. Nosso sangue latino-americano. Ela tomava sol e não
crescia. Ela não precisava de água. Mas eu me lembro do cheiro do ar, e de seu
perfume vez em quando, nesses dias de sábado ensolarado, que é hoje. Lembro em
como os sorrisos pairavam nos recantos bem cuidados de uma América quase
européia. Numa sonata alegre passei a ouvir: “Já não cantas, já não vibras, já nem existes mais, pobre de ti. Pois se
não existe em mim, pois se fugistes das agruras do meu universo, já nem existe
mais, em canto algum.” Pois assim é a realidade humana, pensava, de
expurgar o som o cheiro e o gosto, do tango da pele e da carne, e seguir.
O meu segundo momento de epifania me fez tremer
as pernas; por Deus, a dualidade do homem e da ciência, das partículas e das
ondas, das mitologias e da história; Haveria então uma flor de papel crepom
vermelha para cada flor de papel crepom azul. Eu sentei e chorei. Não de
desgosto ou descontentamento, mas de pura e inextrincável saudade.
Eu apertei a sua mão, mas não tive coragem de te
olhar. E segui. A flor de crepom azul eu trouxe comigo e a vermelha talvez
ainda exista, em algum lugar, mesmo que em um tempo diferente desse que lhes
falo. Talvez esteja, ou seja, desbotada, rasgada ou rabiscada com nomes e
telefones, corações transpassados por flechas e desenhos felizes. Talvez esteja
escorando uma foto de alguém. Talvez dentro de uma sacola, num fundo de
armário. Eu não sabia. A minha jaz em uma caneca de porcelana e eu por vezes
acho que é de verdade, porém não tem espinhos; tentei aguar-lhe uma vez, mas em
súbito lembrei que iria morrer com meu cuidado excessivo; lembrei que adubar
não era necessário. Ela jaz saudável e intacta, sem pegar sol, sem emitir odor,
sem atrair insetos, sem apodrecer, sem murchar nem secar. O lado mais bonito
das flores de crepom é que, apesar de falsas, não morrem.
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