quarta-feira, outubro 16, 2013

Flor de papel crepom azul



Descendo pelas brancas falésias de Albion, eu pensava em nada. Algumas poucas coisas pululavam em minha mente, de natureza aleatória e cíclica. O veículo me conduzia por reinos e destinos diversos. Por quais caminhos e por onde iremos parar talvez seja uma pergunta muito complexa. O clima era quente e ameno e as pessoas se espremiam na charrete. Eu pensava que deveria estar pensando em algo. Que tudo que havia acabado de acontecer deveria me avivar as memórias mais profundas. Porém, nada. Nada me ocorreu por um bom tempo. Eu ficava pensando em Dom João V, e o que ele estaria pensando no momento. Talvez em alguma bobagem, frívola, que imediatamente o levaria a preguiça, ao tédio, e ao desejo em freiras do convento da capela real; que se entregavam por obrigação, gemiam, suavam e faziam prole; que tornavam-se freiras que por sua vez davam a luz a novos filhos bastardos que habitariam o palácio do marquês de Louriçal, na zona Palhavã. Pensamentos encíclicos em caminhos bifurcados, que bifurcavam novamente mais à frente, de novo e de novo, cento e noventa e seis vezes, retornavam; e eu me dava conta do labirinto em que habitava. Arrebatado pela calma resignação, eu cumpri boa parte do caminho sem que ao menos um pensamento persistisse em minha cabeça; fiquei pensando talvez em por que o rio chamava amazonas, por causa do estado ou o contrário era verdadeiro, num se-e-somente-se, talvez. O rio correu e desceu a ribanceira, me atingindo com força. O tempo todo, todo o tempo. O tempo é sempre. Comecei a reconhecer as veredas de minha mente cada vez que passava mais de uma vez por um lugar, por uma porta gigante de carvalho maciço – que atrás abrigava dois tigres em um saguão de pedra lisa; um laranja e um branco, ambos rajados – por paredes sólidas e frias, por brumas elétricas. Reajustando e recalculando meu caminho. Eu lembrava muito bem de um homem com feições de um réptil quelônio, nariz gordo e com marcas do tempo, feito pequenos buracos, quase careca e parecendo tediosamente caridoso. Ele ficou horas e horas – cento e noventa e seis horas – falando coisas incompreensíveis a mim, outorgando, constituindo, previsto nos ditames, incluso na minuta, inscrita no número dois cinco quatro sete dois, mil vezes. Eu via a boca do homem mexer, eu via outro homem sentado na mesa atrás, indiferente ao mundo ao redor. Eu olhava você chorar. Às vezes tossia. Eu não soube o que fazer, minha mente simplesmente não soube.
A mente ia longe já. Estávamos os dois sentados numa mesa em frente a um restaurante qualquer na Avenida Sarandi, em Montevidéu, tomando uma taça de cerveja e apreciando o vaivém das pessoas, algumas apressadas, outras calmas e sorridentes. Alguns grupos de jovens passavam fazendo estardalhaço falando em castellano, que soava como romance aos ouvidos. Nada fizemos para mudar o mundo naquele instante, apenas existimos, lado a lado, neste fragmento de tempo. Acho que no tempo anterior, que era o presente, também estávamos lado a lado. Existimos para tudo de uma vez, numa esquina. Você parecia linda e eu parecia feliz; por hora realmente devo ter acreditado em tal façanha de Deus e me julguei um viajante do tempo. Nesse dia em particular, no qual vivia presentemente, porém já estava incluso num passado truncado, ficamos ébrios, andamos feito loucos, da praça da independência até o porto – comemos um naco de carne que assava ao lado de grandes pimentões vermelhos e amarelos numa churrasqueira de um quiosque em um mercado bagunçado e escuro. O som de um saxofone melancólico soava no ar e um casal ao lado dublava baixinho “No importa la razon para amar te”. Uma sensação de choque elétrico percorreu minha espinha e de repente vi, em apenas um dos meus olhos, uma flor de papel crepom azul.
Você estava ao meu lado ainda, ou talvez fosse mais um pedaço de passado truncado no meu presente, que dessa vez nem mesmo sabia onde se encontrava. A flor de papel crepom azul era feita à mão por crianças de rua que trabalhavam forçadas nos desertos da pobreza da América. Não tinham valor. As flores de crepom azul são antagonistas de si próprias. Frases aleatórias sobre teorias teológicas me recordaram da dualidade do mundo; onde há um bom, haverá um mal, onde há um tigre, haverá um dragão, para cada defeito teu, há uma qualidade que os anulam, e no céu deverá tudo ser balanceado em perfeita harmonia, pois os próprios sábios da babilônia já preconizavam tal pensamento desde o século III antes de cristo. Dessa forma, eu tive uma epifania, e me prostrei diante de tal; para cada flor de crepom feita por uma criança de rua seminua e de rosto sujo, uma flor nos jardins da América nascia.
Eu estava titubeante entre o passado e presente entrelaçados entre si. Mas voltamos ao nosso papo, na Avenida Sarandi, porém de canto de olho eu vi um homem velho abordando duas crianças e metendo no bolso o pouco dinheiro que eu acabara de lhes dar. Eu me lembro que voltamos a nossa hospedaria, naquele dia, que é hoje, e abrimos a janela que dava frente a estátua do General Artigas. A noite ia alta e quente e nos amamos como dois namorados, pois beijei-lhe a boca e disse que a amava, em seu rosto e em seu corpo, enamorado. Eu lembro muito bem de cada detalhe, real ou inventado, daqueles dias, que são hoje, o camaleão andando calmo nas terras agrestes dos jardins, os cachorros de rua, o cachorro empalhado, o sol, o sol... O rio da prata, as praias, o delírio, as bicicletas, o vento, o chivito com ovo extra. A flor de crepom sobreviveu à passagem rigorosa dos dias, em uma pequena botella de alumínio, no lado esquerdo do meu cérebro. Ela ficou ali parada, enfeitando o ambiente e minha memória. Nossos amores passados, nossos próprios amores passados, que foram agora. Nosso sangue latino-americano. Ela tomava sol e não crescia. Ela não precisava de água. Mas eu me lembro do cheiro do ar, e de seu perfume vez em quando, nesses dias de sábado ensolarado, que é hoje. Lembro em como os sorrisos pairavam nos recantos bem cuidados de uma América quase européia. Numa sonata alegre passei a ouvir: “Já não cantas, já não vibras, já nem existes mais, pobre de ti. Pois se não existe em mim, pois se fugistes das agruras do meu universo, já nem existe mais, em canto algum.” Pois assim é a realidade humana, pensava, de expurgar o som o cheiro e o gosto, do tango da pele e da carne, e seguir.
O meu segundo momento de epifania me fez tremer as pernas; por Deus, a dualidade do homem e da ciência, das partículas e das ondas, das mitologias e da história; Haveria então uma flor de papel crepom vermelha para cada flor de papel crepom azul. Eu sentei e chorei. Não de desgosto ou descontentamento, mas de pura e inextrincável saudade.
Eu apertei a sua mão, mas não tive coragem de te olhar. E segui. A flor de crepom azul eu trouxe comigo e a vermelha talvez ainda exista, em algum lugar, mesmo que em um tempo diferente desse que lhes falo. Talvez esteja, ou seja, desbotada, rasgada ou rabiscada com nomes e telefones, corações transpassados por flechas e desenhos felizes. Talvez esteja escorando uma foto de alguém. Talvez dentro de uma sacola, num fundo de armário. Eu não sabia. A minha jaz em uma caneca de porcelana e eu por vezes acho que é de verdade, porém não tem espinhos; tentei aguar-lhe uma vez, mas em súbito lembrei que iria morrer com meu cuidado excessivo; lembrei que adubar não era necessário. Ela jaz saudável e intacta, sem pegar sol, sem emitir odor, sem atrair insetos, sem apodrecer, sem murchar nem secar. O lado mais bonito das flores de crepom é que, apesar de falsas, não morrem.

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