domingo, maio 26, 2013

Já na ida, e na volta.



“Não faça da nossa estória uma ex-tória”


De nascença sou paulista. Paulistano, termo preciso. Minha mãe também, nascida por aqui em algum lugar da zona norte. Ela me contava que quando criança lavava roupa no rio e eu fico hoje me perguntando que tal rio seria esse com água limpa, pra se lavar roupas. A cidade de São Paulo seria incrível se nossos rios fossem limpos, como Paris, como as vias européias em geral. Adotamos normalmente, dos europeus, só o que não nos vale. Minha mãe dizia também que quando moça, seu passatempo com as irmãs, era ir ao circo, e contando-me essas histórias ela fazia uma pintura na descrição, embaraçando as cores vermelhas e amarelas das tendas, com o cheiro dos animais e as apresentações dos Demônios da Garoa. E eu fiquei pensando um pouco, tecendo na minha imaginação, um cenário louco e bucólico, de trás pra frente, onde um palhaço, dando os braços para o ar e sorrindo maniacamente, cantava trem das onze e corria em direção ao público, onde uns riam e outros choravam, de espanto. Ela contava que naquela época era muito comum fazer festa junina nas ruas e ela passava bom tempo com as irmãs recortando bandeirinhas, que seriam presas a barbantes, e por fim enfeitariam os arcos de bambú que passavam de um lado a outro na rua. Fogueira grande e quentão, frio de época. Vez em quando, por aquele tempo, aparecia o tio dela e estacionava o caminhão de carga, sujo de barro do Brasil, e ficava um dia ou dois. Esse homem era tido como um dos mais brutos de toda região e fazia fama com sua crueldade e vilania. Lembrava minha mãe que um dia ele arrancara a orelha de um homem com um único soco, e eu dizia que aquilo era impossível, mas ela replicava, dissertando que seu punho tinha a força de um coice de burro chucro. Que imagem terrível e de triste solidão que fiz de meu tio-avô, temperada com dias de violência e aventura, nas estradas a fora ouvindo uma radiola velha e fumando cigarro sem filtro. E não me lembro ao certo, mas esse meu tio-avô, segundo minha mãe, tinha corpo fechado. Desses tipos que nenhum sincretismo atinge, ilê, ilê camará, nem despacho nem raiz de maniçoba, nada derruba tal cristão com suas rezas e seus guias. Não cheguei a conhecê-lo, nem a seu pai, meu bisavô, que era homem sovina e misantropo. As vezes fico imaginando que vingamos pelo tempo, ao sabor da sorte e do vento. O cenário todo posto em perspectiva de lavadeiras e donas de casa de visão débil pela neblina das cinco da manhã e pela ignorância do androcentrismo natural da década de cinquenta me traz qualquer coisa de familiar ainda. Ela diz sempre, baixinho e com carinho, que o que ela viveu de ruim não quis passar pros filhos, e sem saber me inclui gentilmente no abraço de sua sabedoria. A todos nós, em fato. 



Meu pai vem de cima, como dizem, Pernambuco. Estado lindo, de Recife à Olinda, belezas e cultura, antigo e novo, cores dos carnavais e dos bonecos de gigantes de braços frouxos a pairar na multidão. Porém meu pai vem de região afastada no estado, alguma coisa perto da Bahia, onde antigamente era uma passagem dos missionários que pregavam para população ribeirinha. Uma semelhança com as histórias de minha mãe é o tal do rio, que meu pai me dizia ir pescar quando criança, de manhãzinha, quando o ar ainda não estava quente. Ele contava bem devagar das suas molecagens dos tempos idos, em que pegar goiaba do lado de lá da cerca era sentimento de liberdade, e que juntar três ou quatro amigos para passar a perna e derrubar a professora era motivo de riso solto, e valia a pena o castigo. Meu pai é de dia de São José e tem santo forte. Veio ao mundo numa casa de taipa na beira do rio, como o caboclo das matas, e criou uma fita ligando sua origem até São Paulo, fita acetinada escrita Nosso Senhor do Bonfim. Criou cinco filhos e trabalhou por sete homens, amou por vinte e cinco. A mãe dele disse que nenhum cobertor é curto para os nossos corações quentes. É um algo de dar, dar muito, as vezes até sem sinceridade. A mãe dele dizia que ele nasceu tão rápido que ninguém percebeu. Ela estava sozinha na casa, o marido na lida, e pediu pro meu pai buscar um pouco de água de rio e quando ele voltou já tinha nascido. É confuso, mas é estória. Minha vó tem as mais insólitas, inspiradas talvez em algum escritor de cordel que se perdeu nas tramas do tempo. Certa feita, contava ela, na beira do rio ela viu uma dança de peixes pratedos que voavam por cima das águas, rente a superfície, e eram brilhantes à luz da lua. Na escuridão da noite era possível ver a silhueta de um homem, na margem oposta, tocando uma música de feitiço no acordeão. No dia seguinte encontraram milhares de peixes à margem do velho chico, que foram coletados com a alegria esperançosa do milagre. E eu fico pensando que minha vó é qualquer coisa como de outro mundo, mistura de coisas, pimenta dedo-de-moça vermelha e graúda sobre tábua de madeira rústica. É doce, severa e diligente. Diligência que meu pai herdou. Acho que talvez eu tenha falhado nesse ponto, mas sem querer meu pai ensinou-me a maior lição, sobre a segurança de nossos atos pensando no futuro. E me envolve com sua matuta solidez.


Pensando não tão longe, eu me via correndo descalço nos quintais de cimento queimado. Tínhamos uma árvore de tronco apodrecido, que durante a primavera despencava de coquinhos amarelos, bem redondinhos, minha mãe dizia pra gente que eram venenosos. Claro que um dia eu comi um, só pra verificar a veracidade do dito. Tínhamos um cão. Tínhamos um tanque de pedra. Tínhamos aranhas, muitas aranhas. Tínhamos uns aos outros. Tínhamos uma serra de fita que meu pai usava para fazer espadas e carrinhos para nós, nas horas vagas, usando sobras de chapas de compensado. É simples, é muito simples. Fico pensando nas análises combinatórias que faço mentalmente sobre quantas pessoas são parecidas comigo, conosco, e as combinações são tantas e infinitas, mas ainda assim únicas. 

O dia de hoje foi curioso, eu levantei e me banhei, tomei duas xícaras de café preto, o que talvez explique o bater dos meus dentes. Abri todas as janelas, buscando o ar da primavera e nele encontrar, por sorte, alguma identidade com algo que não mais possuo. Após alguns breves minutos sentindo o vento lambendo-me as faces eu pensei ter adormecido de novo. Foram três batidas suaves na porta que num primeiro momento me fizeram dúvidar da minha audição. Quem haveria de ser? Abri. Pedi que entrassem. Meus fantasmas do passado vieram me visitar hoje, bem cedo, mas aos poucos vão se desvanecendo, com suas cores pálidas, roxas e verdes. Mas eu insisto, na minha solidão rasgada, para que fiquem, pois estou preparando um chá.

Foto: José Carvalho

O Velho Francisco by Chico Buarque on Grooveshark

Um comentário:

Juliana Carvalho disse...

Realmente, não gostei, amei ler e me senti naquele quintal enorme pra nós, onde fazíamos nosso mundo! Com contos, que devíamos rememorar sempre, as corridas de carrinho, as brincadeiras de queimada, banhos de tanque, nosso pinheiro de natal, que crescia muito, afinal já plantamos uma árvore! Nossa infância foi abençoada, penso nisso muito e tento passar pro Pietro, pena ter que ir trabalhar, mas o que me conforta é que ele tem uma mãe, que nem nós tivemos.. com bolinhos de chuva, bagunça na cozinha, brincadeira na terra, e sem perder o carinho.. e o amor de avó! Vc deveria ser escritor, já te disse isso! mil bjs...

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